quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Quando persistimos no erro

Versão traduzida do inglês de nota publicada no meu Facebook no dia 8/12

Recentemente, o brilhante escritor português José Saramago lançou um livro chamado Caim. É uma crítica divertida e polêmica ao Velho Testamento e ao Cristianismo como um todo. Não esperaria algo diferente de Saramago, mas acredito que ele perdeu a chance de escrever algo mais interessante sobre o tema. O escritor usa a história de Caim e Abel apenas para destacar seu ponto de vista anti-religioso, esquecendo-se completamente que essa história é certamente uma das mais humanas de toda a Bíblia. Embora eu ainda goste de seus livros, acho que Saramago dessa vez não foi tão feliz.

A história dos dois irmãos, filhos de Adão e Eva, é bastante conhecida. Depois de oferecer um sacrifício que não foi aceito por Deus, uma vez que Abel tinha oferecido o melhor do seu rebanho para satisfazer a Deus, Caim mostra-se desapontado e cabisbaixo. De acordo com o quarto capítulo de Gênesis, Deus pergunta a Caim: “Por que andas irado, e por que descaiu o teu semblante?”. Deus continua dizendo (e aqui vem a melhor parte da história): “Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Se, todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo” (Gênesis 4: 6-7 Almeida RA). No versículo seguinte, Caim mata seu irmão Abel.

No seu romance A Leste do Éden, John Steinbeck questiona as interpretações existentes do versículo citado. Enquanto a versão inglesa King James afirma que Caim deve dominar o pecado (thou shalt rule over him), a versão American Standard diz que Caim vai certamente dominar o pecado (do thou rule over it). A primeira chama à obediência, enquanto a última está segura de que o desejo pecaminoso será superado. Mas Steinbeck levanta uma terceira interpretação possível para o mesmo versículo. Segundo o autor, a diferença estaria na palavra hebraica timshel: “Tu poderás dominar sobre o pecado” seria uma tradução melhor. Isso daria a homens e mulheres a possibilidade de escolha entre o bem e o mal. Deus avisa Caim e o deixa escolher.

Não pretendo discutir aqui questões relacionadas a livre arbítrio ou à inclinação humana ao pecado. Também não pretendo examinar as diferenças entre as traduções da Bíblia. No entanto, é inevitável que pensemos sobre nossas próprias vidas sob a luz da interpretação de Steinbeck. Por vezes, continuamos fazendo coisas que sabemos serem erradas desde o começo. Mas nossas paixões e desejos não nos deixam em paz. Permitimos que elas nos dominem e nos levem a persistir no erro. Deus nos alerta, a Lei está lá para nos relembrar disso. Quando tudo termina da pior maneira possível (como já se previra), nossa consciência bate e nos arrependemos. Mas Deus já não tinha nos avisado suficientemente sobre isso, como ele fez com Caim?

Na verdade, essa história não é sobre livre arbítrio, mas sobre escravidão. Mesmo tendo a possibilidade da escolha, continuamos cativos de nossa natureza pecadora. Na maioria das vezes, escolhermos não “assassinar” apenas porque a Lei ou alguma regra moral afirma que é errado. Entretanto, continuamos presos em nossa natureza pecadora. Não é o amor de Deus e a liberdade cristã que nos motiva, mas a opressiva (e quase sempre necessária) Lei.

Deus nos alerta, mas não queremos ouvir seus avisos. Ainda assim, a graça de Jesus ainda está lá para nos carregar, mesmo quando sentimo-nos hipócritas e estúpidos. Apenas aqueles que reconhecem seus pecados entendem realmente o que significa o anúncio da graça depois da confissão: quando o pastor ou padre diz durante a celebração: “teus pecados estão perdoados”.

Deus fala conosco quando há algo de errado em nossa vida, mas isso não significa que ele nos rejeita. Muitos de nós, quando éramos crianças, sentíamo-nos rejeitados por nossos pais quando eles estavam desapontados conosco. Mas isso nunca significou que eles não nos amavam (pelo menos no meu caso). Deus ficou com Caim mesmo depois do homicídio. Caim não podia aguentar o fardo da própria culpa, mas Deus prometeu protegê-lo.

Ultimamente, tenho ferido apenas a mim mesmo com meus próprios pecados. Graças a Deus não tenho machucado outras pessoas (até onde sei...). Mas Deus está aí para curar-me e também (espero) para não permitir que eu cometa os mesmos erros. Daí então poderei fazer a escolha certa – não devido às restrições impostas pela Lei, mas porque Cristo me liberta.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Conflito ético

Pensar sobre o certo e o errado é algo que já me ocupou por um bom tempo. Antigamente as pessoas em geral não tinham maior necessidade de pensar sobre isso, afinal, o certo e o errado já estavam dados. Mas na época relativista em que vivemos, é difícil escapar da reflexão sobre a ética.

No entanto, uma coisa é o que pensamos ser ético de forma racional. Outra coisa são nossos verdadeiros sentimentos que temos guardados dentro de nós. É na tensão entre razão e emoção que, às vezes, um dos lados do conflito quer convencer o outro a ficar quieto. Quando um vence o outro é que vem a ação (ou a falta de ação) – às vezes vemos que cometemos um grande equívoco ao deixar o sentimento vencer sobre a razão; outras vezes arrependemo-nos amargamente de termos seguido nossa razão moralista que só era uma desculpa para a covardia.

Criado dentro de uma moralidade evangélica, cumprir as leis consideradas corretas pelo que eu entendia ser cristão era uma busca eterna. Algumas coisas eram bobagens sem qualquer fundamentação bíblica, teológica, prática ou racional. Essas rapidamente joguei fora. Mas ainda havia aquelas regras que conservei, que considerava válidas. Para essas, acreditava que todos os esforços deveriam ser feitos para que fossem cumpridas, sejam eles humanos ou sobre-humanos. Foi preciso carregar muita culpa para ver a impossibilidade de tal cumprimento pleno.

Seguindo os ensinamentos de Jesus, sempre considerei a vingança ou o sentimento vingativo algo errado. O que eu fazia era simplesmente suprimir o ódio e o desejo de vingança, engolindo seco, fingindo que estava tudo bem e enganando a mim mesmo. Lembro de um episódio em particular em relação a uma pessoa. Engoli seco a dor e a raiva, acreditei que estivesse tudo bem. Mas não consegui, após alguns anos, deixar de me flagrar fazendo piadas sarcásticas, dar alfinetadas e tudo o mais para atingir essa pessoa. Eu simplesmente não tinha superado aquele transtorno. É até curioso ver como a cura não provém de nosso esforço. Eu bem que tentei com as minhas próprias forças.

Sempre considerei errado tentar ficar com alguma guria compromissada (considerando namoro, quem dirá casamento). Para Jesus, o simples desejo por mulher de outrem já era pecado. Concordo, uma vez que, se desejamos a mulher de nosso próximo, não estamos nos colocando no lugar dele de acordo com o mandamento divino maior de amar o próximo. Mas os humanos são e não deixarão de ser humanos. Certa vez não pude evitar o surgimento de um forte interesse por uma menina que tinha namorado. Poderia negar e esconder os sentimentos, mas isso não me tornaria menos pecador. A situação me deixou em conflito: o que fazer? Afinal, o interesse surgiu e, portanto, o problema já existia. Num domingo, orei durante o culto para que Deus não me abandonasse no conflito ético. Estranhamente, ao conversar casualmente com a menina, a conversa chegou a tal ponto que não pude mais esconder meus sentimentos. E agora? Ir adiante ou não? Novo conflito ético se colocou.

Nessas horas, simplesmente devemos recorrer a Deus ao invés de simplesmente reprimir todo sentimento que acreditamos contrariar a ética cristã. É na oração que podemos tentar enxergar as coisas com os olhos amorosos de Deus. Por nossos próprios esforços, nunca deixaremos de pecar. E Deus compreendeu isso ao enviar seu Filho, que se tornou humano, permitindo que nós também fôssemos simplesmente humanos. Cristãos não são seres superiores ou menos pecadores (só se for farisaicamente), são pessoas que vivem da graça redentora de Deus, que sempre nos perdoa e nos ajuda a colocar sinais de seu Reino nesse mundo. É por ela que devemos esperar para que os erros não destruam nossa vida.

O teólogo e mártir Dietrich Bonhoeffer diz que Deus jamais nos deixa em um conflito ético insolúvel. Devemos, portanto, esperar a resposta dele. É isso que estou sempre esperando...

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Dança da chuva

Era um belo fim-de-semana na primavera suíça. Após uma exaustiva semana de reuniões promovida pelo Conselho Mundial de Igrejas, em que discutimos assuntos como a crise econômica mundial, decidi visitar meus bons amigos suíços Daniel, Alena e Tobias. O casal Alena e Daniel há pouco tinham tido uma filha, a pequena Amèlie, motivo de alegria para todos.

Como era um belo dia, meus amigos decidiram que deveríamos levar uns salsichões e fazer uma fogueira no alto de um morro nos arredores de Bern, já dentro dos limites do município de Ostermundigen. Após uma longa caminhada morro acima, de onde enxergávamos o vale todo abaixo, encontramos gravetos para assar os salsichões, enquanto Amèlie fazia barulhos sentada sobre o lençol estendido no chão. Fogueira feita, salsichões espetados: tudo nos conformes com uma conversa entre amigos.

As nuvens começaram a se adensar quando decidimos voltar e os pingos de chuva começaram a cair aos poucos. Resolvemos parar em um charmoso café no meio do caminho de volta. Enquanto sorvíamos nossos chocolates quentes dentro da velha construção de madeira e o volume da chuva aumentava, Daniel se lembrou da situação de uma conhecida próxima em meio a uma conversa. Ela estava passando por um doloroso processo de divórcio: essa pessoa finalmente pensara que tinha encontrado a pessoa certa, mas mais uma decepção ocorrera. Tobias também a conhecia e apenas suspirou, assim como Alena. Daniel então refletiu: “Sabe, o problema fundamental não é achar a pessoa certa, mas sim o amar a si mesmo”. Como sempre, a sacada de Daniel me surpreendeu, apesar de sua aparente simplicidade bíblica e psicológica. Esperei ele concluir: “Desde que você se ame, algum relacionamento vai adiante. A questão não é tanto encontrar a pessoa certa”.

Nunca digiro esse tipo de reflexão rápido. Ainda havia indícios de chuva, mas decidimos arriscar ir embora, afinal a bochechuda Amèlie estava protegida com uma capa de chuva feita para seu carrinho de bebê. Ainda longe do nosso destino, o céu desabou novamente e, sem alternativas para se proteger, Daniel e Tobias resolveram fazer uma “dança da chuva”. Alena empurrava o carrinho rindo de seu marido e de seu amigo loucos e alegres gritando e urrando enquanto giravam no ar suas camisetas encharcadas. Permaneci ao lado dela achando graça também, mas não participei do momento.

Enquanto eles pulavam, perguntei-me a mim mesmo o quanto eu tenho me amado na correria de minha vida. Há alguns anos eu provavelmente estaria gritando com eles se aparecesse a oportunidade. Algo ocorreu nesse meio tempo e percebi que precisava recuperar o tempo perdido.

Voltei para São Paulo e esqueci de quase tudo que pensara naquele momento. Mais uma vez, o turbilhão da vida paulistana me atropelara sem ao menos eu tomar consciência do fato. Mas aos poucos a gente reaprende. O filho pródigo sempre pode voltar para casa.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Uma ficção chamada Barcelona

La Rambla de Barcelona é um lugar que não dorme. Pessoas de todas as nacionalidades caminham por La Rambla durante o verão catalão em quantidades até um pouco irritantes. O emaranhado de pessoas é um problema pra quem carrega malas com rodinhas potencialmente atropeladoras de sandálias alheias. As bancas, abertas até durante a madrugada, estão cheias de bugigangas e souvenirs, sendo que metade é relacionada ao Barcelona F. C.

Sair de La Rambla e chegar a Plaza Catalunya já significa um pouco mais de calma. Não é à toa que Barcelona é uma das cidades turísticas prediletas de muita gente. Movimento do porte eu só tinha visto em Praga, famosa por belas construções antigas e cervejas baratas. Mas em Barcelona, o que atrai são justamente as construções modernas no sentido artístico. O famoso arquiteto local Gaudí deixou uma infinidade de obras bizarras. A Igreja da Sagrada Família, mundialmente conhecida, é apenas um dos devaneios do arquiteto. O Parc Güell levanta também dúvidas sobre a sanidade mental do seu autor, assim como a Casa Battló, que definitivamente gera suspeitas sobre os possíveis alucinógenos preferidos de Gaudí.

Nos primeiros dias fiquei em um pequeno albergue bastante calmo, onde rapidamente fiz uma amiga canadense. Arrastei a pobre coitada até o Camp Nou, estádio do Barcelona e que significa simplesmente “campo novo” no curioso idioma local, o catalão. O preço de entrada no campo era tão salgado quanto entrar na igreja do Gaudí: uns 17 euros. Obviamente, ficamos nas circunvizinhanças, uma vez que a canadense também curiosamente estava no aperto financeiro.

Decidimos então ir à praia sentar um pouco e não pensar em coisa alguma. Em alguns dias, eu teria um congresso na Universitat Pompeu Fabra. Precisava aproveitar meus últimos momentos de folga. Quando chegamos à praia, eu tinha esquecido que as européias de fato praticam o topless. Perguntei para a canadense que estava comigo se ela aderiria à moda local, mas a resposta foi decepcionante. Entretanto, de jovens a vovós, cerca de metade das mulheres eram adeptas da prática. Talvez as vovós não devessem aderir devido à imoralidade estética que causavam.

Um pouco adiante, um rapaz dava algumas leves palmadas no seio direito de sua namorada, como se fosse um pequeno balão, apesar dos protestos da bela moça (cuja histeria em espanhol lembrava a da personagem representada por Penélope Cruz em Vicky Cristina). Enquanto eu contemplava o mar com certa tranqüilidade, já mais acostumado à situação, duas jovens moças locais sentaram-se de frente para nós a fim de bronzear as costas. Conversando, tiraram a parte de cima de seu biquíni a um metro e meio de mim, como se fosse (e pra elas era) a coisa mais natural do mundo. E ali ficaram, enquanto eu fazia cara de parede.

Tinha marcado conversa pela internet com alguém e precisava voltar para o hotel. Pegamos nossas trouxas e voltamos. Saí de uma ficção e fui para uma outra chamada internet.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Quase sem teto por um dia

Há duas semanas, fui para um congresso acadêmico na Holanda. Mandei e-mail para meu amigo Jan, que mora na Alemanha há cerca de três horas de Utrecht, dizendo que poderia dar uma passada por lá. Jan disse que eu poderia ficar lá no fim de semana antes de minha volta ao Brasil, marcada para às 10 da manhã de segunda-feira, horário em que partia o avião do aeroporto de Schiphol em Amsterdam.

Isso exigia que eu estivesse no aeroporto às 8 da manhã. Infelizmente, não havia trem saindo cedo de manhã da Alemanha para chegar a tempo no aeroporto. O remédio era voltar para a Holanda na noite de domingo. Minha peculiar pão-durice achou que a melhor alternativa era dormir no aeroporto. Entretanto, o Fábio e o Ricardo, amigos que estavam no congresso, ficariam até domingo de manhã na casa de meu ex-colega Philipe em Amsterdam. A casa estaria vazia: eles teriam ido embora de manhã, eu chegaria à noite e os moradores estavam viajando de férias. O jeito era arranjar um jeito de me deixar a chave para que eu não precisasse dormir no aeroporto. Assim, poderia ter uma noite decente de sono e sair às 7 da manhã do apartamento em Amsterdam.

O Fábio mandou e-mail mostrando o esquema a ser usado. O Ricardo, que sairia mais tarde, deixaria a chave presa em um fio. Esse fio, fixado por um band-aid, estaria com uma de suas pontas para fora da caixa de correio. Eu puxaria esse fio e pegaria o molho de chaves que estaria dentro da caixa de correio. "Perfeito", pensei. "Quase perfeito", pensei em seguida. O Fábio não tinha me enviado o endereço do lugar. E nem me enviou. Philipe, o dono da casa, me mandou e-mail 5 minutos antes de eu abandonar a Alemanha com o endereço. Ufa.

Mais tranquilo, fui para Amsterdam e tentei seguir as instruções do Philipe para chegar na casa dele. A reforma dos metrôs de Amsterdam impediu-me de seguir essas instruções e, mal orientado por um guarda holandês, peguei um bonde e parei dois pontos antes do correto. Era meia-noite e caminhei praticamente sozinho na rua em direção ao prédio do Philipe. Cheguei lá uns 15 minutos depois, com duas mochilas pesadas e uma mala. "Ufa", pensei, "finalmente vou poder descansar". Há uma semana já sofria devido a uma dor nas costas por excesso de peso. Chegar era um alívio.

Olhei para a caixa de correio e não vi fio algum. Coloquei a mão na estreita fenda da caixa de correio. Apenas as pontas de meus dedos passaram, o que de nada adiantou, porque elas não acharam fio algum. Era quase 00:30 em Amsterdam e eu estava com três bagagens na escuridão. Olhei para os lados - ninguém. Lembrei de meu celular - sem bateria. Apertei o interfone - ninguém como esperado. Parei e refleti sobre a possibilidade de dormir em algum canto ali mesmo na rua.

Nessa hora, apareceu uma cabeça numa janela do prédio. "Uma esperança", disse pra mim mesmo. "Ei, sabe se tem alguém aí no apartamento número 52?", perguntei. Ele retrucou que achava que não e sumiu após meu desalentado agradecimento. Fiquei sozinho de novo. Fiquei 5 minutos pensando se tentava chegar a alguma estação, mas a luz da janela de meu último interlocutor continuava acesa. Não resisti e gritei: "hey!". A cabeça apareceu de novo. "Desculpa te incomodar a essa hora, mas posso usar sua internet? Preciso saber onde está a chave que meus amigos disseram que estaria aqui. É bem rápido!". Após um breve momento de hesitação, ele disse: "ok, espere um pouco". Trinta segundos depois, o portão do prédio se abriu.

Agradeci o cara e disse que lamentava pelo incômodo. Ele e sua mãe, ambos holandeses, me receberam bem e disseram pra eu me sentir à vontade. A mãe inclusive pediu desculpas pela bagunça. A internet, todavia, não trouxe novidades. Eu tinha seguido as instruções corretas. O bem-feitor então pegou uma haste fina de metal e disse que tentaria pescar a chave, uma vez que provavelmente o fio que estava preso tinha descolado. Voltamos para as caixas e ele tentou o procedimento, mas nenhum barulho denunciou a existência de qualquer chave.

Já desanimado, voltamos para dentro do prédio, mas então percebemos: a caixa de correio estava aberta para dentro do prédio. E sim, lá estava a chave com o band-aid descolado. Era uma da manhã em Amsterdam e eu me sentia renascido. Agradeci muito o holandês, mas não tinha presente para lhe dar. Não precisava dormir na rua com laptop e malas. Poderia ter uma noite decente.

E pensar que toda sexta-feira, a igreja luterana do Centro de São Paulo recebe cerca de 200 moradores de rua dentro do templo. E eu desesperado com a possibilidade de não ter teto por uma noite em um tranqüilo bairro holandês. Como posso não me importar então com quem diariamente dorme nas fétidas ruas do Centro paulistano ou em qualquer outro lugar?

sábado, 25 de julho de 2009

Solidão na escuridão

Dias atrás, despedi-me novamente de Porto Alegre. Os momentos antes de chegar ao aeroporto são sempre um pouco depressivos. Chegar em São Paulo e ver aquela multidão correndo com pressa aprofunda o sentimento de não pertencer àquele lugar. Mas pior do que isso é chegar e, logo em seguida, perceber que cortaram a energia elétrica de seu apartamento.

Coloquei o laptop na tomada e nada. Interruptores, lâmpadas, nada funcionava. Finalmente a chave geral: tudo como deveria estar, mas sem luz. O zelador me esclareceu o que ocorrera: o antigo inquilino mandara cortar a luz e retirar o nome dele da conta. Quando nos mudamos para o apartamento, a luz não havia sido cortada. Tentamos pagar a primeira conta, mas a caixa do banco avisou-me que já estava sendo debitado na conta corrente de alguém. Ligamos para o proprietário dizendo que desejávamos regularizar a situação, mas ele não conseguiu localizar o antigo inquilino. Por fim, deixamos tudo como estava, porquanto era mais cômodo, acreditando que as coisas um dia resolver-se-iam. E, de fato, a situação se resolveu – da pior maneira possível.

Passei a tarde em um café que fornecia acesso à internet e, quando cheguei em casa perto das 22h, não havia o que fazer sem eletricidade. O Felipe comprara velas e eu, uma lanterna. Deitei-me na cama e comecei a ler com a lanterna ligada criativamente pendurada na janela logo acima de minha cabeça. Um pequeno ponto luminoso se formou na vastidão do apartamento escuro. Mesmo ciente da presença de amigos nos quartos contíguos, a escuridão me deixou um sentimento de solidão repentina. Acabara de sair da minha acolhedora Porto Alegre, onde havia deixado família e amigos e onde tinha conhecido uma pessoa muito especial naquele fim de semana específico. Senti-me só, ouvindo apenas os ruídos longínquos dos carros lá fora na madrugada, sem luz ou distração e sem qualquer interesse pelo livro aberto iluminado na minha frente. Apenas só.

Ali deitado, lembrei-me do dia em que saí para caminhar com Daniel, um até então conhecido que gentilmente me hospedou na capital suíça em minha primeira passagem por aquele país. Era noite e atravessamos uma praça completamente escura, discutindo fé, graça e Deus. Nunca vira um breu tão intenso na rua e não conheço até hoje cidade grande no Brasil com iluminação tão reduzida à noite. Eu reclamava para Daniel que não entendia nem confiava muito em Deus. Quando percebi, tinha atravessado uma praça desconhecida apenas seguindo o barulho dos passos de um amigo recente sob uma iluminação praticamente nula. Percebi que confiar em Deus era algo parecido e que meu salmo de confirmação (Salmo 37.5) fazia sentido.

Pensando nisso, dei-me conta então que eu não estava sozinho em meu quarto escuro. Não estou sozinho e amanhã é um outro dia, pensei. Joguei o livro no chão ao lado da cama e comecei a escrever sobre o que tinha pensado.

domingo, 28 de junho de 2009

Schneeballschlacht?

Na última vez que escrevi sobre alemães, ressaltei apenas os pontos negativos e, na verdade, bizarros de minha passagem por aquele país. Recebi inúmeras cartas e comentários achando estranho que eu não tivesse gostado da Alemanha (como se fossem inúmeros os visitantes e fãs deste blog). Evidentemente, o que escrevi foi uma injustiça e acabei sendo mal-interpretado. A Alemanha é um ótimo país para se visitar e além de encontrar alemães excêntricos mencionados em um post anterior, encontrei também muitas pessoas das quais guardo excelentes lembranças.

Cruzei a Alemanha de norte a sul e de leste a oeste na primeira semana de advento em dezembro – acho que conheço muito bem os percursos da Deutsche Bahn (a empresa de trens). Houve um dia em que, para espanto de alguns, parei em Remscheid, cidade próxima a Köln, ou Colônia em bom português. Conhecia o grupo de jovens da igreja evangélica (a igreja territorial local uniu luteranos e reformados) em Remscheid porque eles tinham visitado o Brasil meses antes. Ficaram algumas semanas em Limeira e vieram para São Paulo em uma tarde de sexta-feira para conhecer o trabalho da Paróquia São Paulo – Centro com moradores de rua. Fiquei em contato por e-mail com um dos líderes do grupo, o jovem Jan, ainda terminando seus estudos secundários, um cara muito gente boa. Quando eu o avisei que estava indo pra Alemanha, ele imediatamente ofereceu-me sua casa e pude ficar dois dias e meio em sua cidade, Remscheid.

Como mencionei, de repente eu estava ali em Remscheid. E foi lá que eu realmente vi neve em generosas quantidades pela primeira vez. Na Suécia, eu vira neve suja no chão e uma bola de neve trazida por um pequeno sueco que a guardara no congelador por uma semana para que o brasileiro aqui pudesse ver. Na Noruega, estava frio e escuro, mas não tinha nevado. Em Neuendettelsau, ao sul da Alemanha, conheci o tal do Schneeregen, algo que parece neve, mas molha irritantemente e tem pouca consistência. (Aliás, Schneeregen segue a velha lógica germânica: Schnee significa neve e Regen, chuva. Nada mais apropriado para algo que não é chuva nem neve). Em Remscheid, acordei e estava tudo coberto de neve (apenas Schnee). Fui à escola com Jan e Juliane, sua simpática namorada, de pai italiano e mãe alemã. Ao nos aproximarmos da escola, flocos caíam sem pressa alguma de se encontrar com o chão esbranquiçado e percebi que as crianças já tinham armado uma guerra de bolas de neve logo antes da aula.

Assisti a uma aula de inglês e pude ver a abissal distância que há entre as aulas de inglês em um Gymnasium alemão e nossas melhores escolas. Comparativamente às outras escolas particulares de Porto Alegre, o inglês que tive no Colégio Militar era muito superior. Entretanto, o nível da discussão nessa escola alemã estava alguns andares acima do que eu tivera em meus tempos de ensino médio. Há uma diferença fundamental, é verdade: o Gymnasium é uma escola destinada àqueles que vão cursar universidades e, assim, é natural que essa escola tenha uma qualidade muito superior, uma vez que já foi feita uma seleção entre os alunos. Além do Gymnasium, há ainda mais dois tipos de escolas destinadas a ensino mais técnico do que acadêmico (ou seja, para os que não eram bons alunos). Um sistema talvez um pouco injusto porque pune excessivamente os erros passados, mas provavelmente eficiente, como os alemães geralmente costumam ser.

Mas além dessas constatações sociológicas, a parte mais legal de minha visita à cidade foi conhecer a igreja local e o belo espaço reservado aos jovens. No espaço grande, com cozinha e tudo, fizemos algumas panquecas, além é claro de jogar um pouco de tênis de mesa e conversar. No dia seguinte, fomos visitar os jovens da cidade vizinha, que também estavam no grupo que veio ao Brasil. Fui recebido de forma muito mais amistosa do que supunha por pessoas que tinham conversado comigo por apenas uma tarde. Conversamos comendo raclette e gastamos boas horas ali falando sobre a vida, até que todos decidiram, é claro, que era hora de uma guerra de bola de neve. (Sigamos novamente a lógica germânica: bola de neve obviamente é Schneeball. E, como Schlacht é batalha ou luta, a guerra de neve é Schneeballschlacht - que língua prática, assim é fácil operar a HP12C). E, mais do que isso, eles decidiram que eu precisava fazer meu primeiro boneco de neve (sigamos a lógica germânica: Schneemann). Foi divertido ser a criança que nunca pude ser por viver em um país que não neva.

Jan e seus amigos ainda me levaram para patinar no gelo em um dos dias. Foi no mínimo desastroso e agradeço a Deus por não ter perdido nenhum membro, que poderia ter sido cortado pelas lâminas de patins alheios de crianças que patinavam esbaforidamente. Talvez tenha sido curioso para elas ver um rapaz de 23 anos de feições orientais ter dificuldades imensas para andar mais do que alguns metros sem despencar no chão de gelo. Por sorte, não houve ferimentos comprometedores.

Deixei por lá alguns presentes e uma infinidade de agradecimentos. Baguncei a vida deles por uns dois dias, mas tenho certeza que eles gostaram de receber um irmão da igreja no Brasil. E eu posso dizer o mesmo. É bom se sentir em casa mesmo estando tão longe. De certa forma, não deixa de ser em casa, quando estamos na casa do Pai com irmãos. Como dizia a música que costumava cantar em minha adolescência na igreja, é “onde o céu toca a terra [...] que chega a verdadeira paz”.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Odores e sabores

"A memória dos odores é muito rica", disse John Steinbeck no começo de um de seus mais famosos romances, mas eu acrescentaria também a memória dos sabores que as acompanham. Ontem mesmo, tive uma experiência nostálgica ao sentir o fumegar de uma sopa oriental que minha mãe costumava preparar para mim, saboreando-a em seguida com uma satisfação quase infantil.

Recentemente estive me Genebra em mais uma reunião do Conselho Mundial de Igrejas (CMI). Debatíamos que posicionamento deveriam as igrejas tomar diante da atual crise mundial e, nos intervalos, degustamos as refeições do hotel onde nos encontrávamos. O sabor era bom e os pratos eram esteticamente perfeitos, como se a beleza fosse mais importante do que a capacidade de matar a fome. A quantidade não era generosa e era exatamente o que deveria ser: apenas mais uma refeição de restaurante chique. Refeições caras que nos tornavam até hipócritas diante de nossas discussões sobre os nefastos efeitos da crise mundial sobre os pobres.

Lembrei da reunião que o CMI promoveu em Cuba, em um seminário teológico em Matanzas. Estou muito longe de ser fã da ditadura cubana - pelo contrário. Contudo, senti-me muito bem recebido em meio ao povo cubano. Lembro-me das refeições simples, com seus sabores e odores caseiros, com seus temperos particulares da região, preparadas por diligentes e simpáticas senhoras cubanas, provavelmente voluntárias. Também almoçamos em uma igreja presbiteriana em Havana, onde recebemos generosos pratos - comida feita pela comunidade. Não sei exatamente por que, sentia-me realmente bem durante aquelas refeições. Os cubanos infelizmente são pobres e, conseqüentemente, não podem nos oferecer iguarias em restaurantes. Mas pensando bem, prefiro essa refeições caseiras e simples.

Algum outro dia reclamaram quando descrevi minhas incursões a restaurantes em Oslo, durante uma outra reunião, desta vez no inverno escandinavo. Patrocinados pela rica Igreja da Noruega, saboreei peixes de sabores diversos com deliciosos acompanhamentos tradicionais de Natal. Novamente, esbáldavamo-nos em gula em meio a uma reunião de igreja. Nesses momentos, como também após dias de bandejão da USP ou de restaurantes chiques aqui mesmo no Brasil, a comida simples da mãe distante, com seus sabores e odores característicos, voltam à memória. Uma sensação de nostalgia se abate.

Após meses em São Paulo sem voltar pra casa em Porto Alegre, alguns conhecidos foram comigo aproveitar um fim de semana com promoções em restaurantes de São Paulo. Depois de esperar em filas, entramos em um aparentemente fino restaurante de cozinha espanhola. Novamente, refeições estéticas, quantidades mínimas, ambiente excessivemente artificial, todos reclamando dos pratos. Boa companhia, é verdade, mas nada como as paredes da sala de jantar em Porto Alegre ou como as refeições caseiras cubanas. Nem com meros salsichões na fogueira é possível comparar, como fiz na Suíça com meus amigos no alto de um monte com vistas para os Alpes, no dia subsequente às culinariamente finas reuniões do CMI. 

A refeição ceseira bem feita em ambientes que nos sentimos acolhidos e participantes sempre me parece melhor. A memória dos odores e sabores se associa a todos os outros sentimentos de satisfação nesses ambientes. Pelo menos em parte, Steinbeck tinha razão.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Fazer por merecer

Prestei meu primeiro concurso aos 11 anos de idade. Concurso difícil para entrar na melhor escola de Porto Alegre, o Colégio Militar. Comecei a estudar dois meses antes da prova em casa com a ajuda de minha mãe que sentava comigo e estudava matemática todos os dias, enquanto muitos estudavam desde o início do ano em cursos preparatórios. Em um sábado, fomos conferir o resultado final do concurso no portão do colégio. Eu e meu pai. “Thomas Hyeono Kang – 4º lugar”. Olhei com meu pai com expectativa, lembro até hoje. Ele disse “poderia ter sido 3º, aí entraria no pódio”.

Não vou culpar meu pai, ser humano como qualquer outro, e que tentou dar o melhor para seu filho, assim como a minha mãe. Eles amam a sua maneira, sem conseguir demonstrar diretamente, uma doença bem comum entre pais orientais. De qualquer forma, até hoje cobro demais de mim mesmo. Decepciona-me profundamente ter feito algo sem o devido cuidado ou perceber que sou incapaz de algo. Hoje, meus pais não exigem muito de mim, basta eu. E assim ocorre com muitas pessoas. Conheço muitos casos mais extremos e, embora reconheça que esse tipo de exigência tenha suas vantagens (acho que sou relativamente saudável), percebo que o custo é alto para alguns.

A avidez com que olhei para meu pai, esperando o sinal de aprovação dele não deixava de ser o desejo de ser aceito. Em nosso mundo, em que a noção de justiça se baseia no mérito, queremos ser aceitos porque fizemos algo. Queremos fazer por merecer, inclusive o amor de pais, irmãos, amigos e namoradas. E por acreditar que não preenchemos as expectativas (nossas e dos outros), não conseguimos amar a nós mesmos.

Fui criado sob uma educação evangélica, em que me sentia obrigado a me portar como nossos pais e a nossa comunidade esperava que eu me comportasse. Como não conseguimos sempre nos comportar como esperam, carregamos nossos pecados com amargor, escondemos aqueles sentimentos que nos envergonham. A comunidade, a família ou os amigos, todos lançam um olhar julgador. É por isso que talvez os lugares mais hipócritas do mundo sejam justamente as igrejas, cuja essência deveria ser a pregação do Evangelho, mas que acaba transformando tudo numa lei opressora que joga a culpa em cima de nós e nos tira a possibilidade do perdão e da graça. Cria pessoas doentes que não conseguem se perdoar a si mesmas, quanto mais serem perdoadas por Deus.

Por muito tempo pensei no que deveria fazer para sentir a presença de Deus. Novamente, fazer algo, achar uma receita, fazer por merecer. Quando expus a um amigo suíço meus problemas quanto a isso, enquanto caminhávamos na escuridão em Bern, ele olhou e disse “não tente acreditar em Deus”. Em resposta ao meu olhar estupefato, ele continuou: “não tente agarrar-se a Deus com todas as forças, não o torne um objeto. Deus se relaciona conosco, deixe ele dar o primeiro passo”. É Deus que vem, não nós que fazemos algo para merecer encontrá-lo.

Lutero por muito tempo também tentou merecer o amor de Deus, assim como muitas vezes tentamos merecer o amor de nós mesmos. Lutero se penitenciava, batia em si mesmo por causa de seus pecados. Mas não conseguia parar de pecar e a situação só piorava. Quando ele percebeu que o amor de Deus é incondicional, que mesmo em pecado Ele está com a gente, que ele não quer seres perfeitos, mas pessoas que o sigam, ele pôde parar de se torturar.

Ao tentarmos merecer o amor de nós mesmos, dos outros e de Deus, caímos em um círculo vicioso. Jesus disse-nos que devemos amar os outros como a nós mesmos. Sentimos pena de nós mesmos, não nos sentimos merecedores de nada e ficamos centrados apenas em nosso ego ferido. Esquecemos de olhar para o próximo.

Philip Yancey, um excelente autor cristão (um dos poucos bons, diga-se de passagem), costuma dizer que é cristão apesar da Igreja. O Deus que conhecemos nas igrejas costuma ser julgador e ameaçador. Mas não é esse o Deus trazido por Cristo. Cristo conta-nos a parábola do filho pródigo, que após pegar a herança do pai, esbanjá-la irresponsavelmente e se perder na vida, volta para casa pedindo para ser escravo do pai, uma vez que não merecia ser seu filho de novo. O pai, ao ver isso, não o condena, nem exige algo para que ele recupere sua condição de filho. Ele o abraça e o recebe como filho novamente. Não precisamos fazer por merecer para sermos amados.

“Pecca fortiter”, dizia Lutero. Peca com coragem, sabendo que a graça é maior, que Deus perdoa. Não significa que agora saímos pecando deliberadamente. É apenas um chamado para olharmos a vida com coragem, porque acabaremos pecando como qualquer ser humano, mas que Deus está conosco mesmo sem merecermos.  Espero eu, no futuro, conseguir fazer meus filhos entenderem que são amados, mesmo quando não correspondem as expectativas. Afinal, a graça encontra beleza em tudo, como diz a música do U2. 

domingo, 26 de abril de 2009

Ânimo em meio à turbulência

Recentemente andava extremamente desanimado com a quantidade de pequenas e grandes tarefas que se avolumavam para mim em São Paulo. As obrigações de mestrando, que já são suficientes para ocupar uma vida, somavam-se à preocupação com as monitorias para os alunos da graduação e ao projeto junto ao governo do Estado em que tenho trabalhado. Como se não bastassem, compromissos com a Igreja adicionavam ainda mais peso.

Mais do que pelas horas de trabalho, o que mais me deixa nervoso é a perda de foco e concentração devido às muitas atividades pequenas. Também a percepção da incapacidade de fazer tudo como deveria ser feito é exasperante. Um certo perfeccionismo e talvez uma excessiva exigência em relação ao próprio desempenho deixam uma pessoa enfurecida quando se percebe que, mesmo dedicando todo o tempo disponível para as atividades, é impossível executar tudo com excelência.

Incomoda-me profundamente também que algumas de minhas atividades são enfadonhas ao extremo. Outras ainda, como a monitoria, são até agradáveis. Mas com a falta de concentração e tempo, é impossível estar sabendo a matéria tanto quanto os alunos esperam (ou tanto quanto eu gostaria de saber para me sentir realizado). Não consigo não me importar com trabalho mal feito, seja devido às minhas próprias exigências, seja devido às supostas exigências dos outros. E assim, com o tempo escasso restante, fica difícil estar satisfeito com a própria dissertação, ao pensar no quanto ela poderia ter melhorado não fossem os outros afazeres. As atividades da igreja recentemente têm me prejudicado, talvez por que eu mesmo exijo de mim mais do que realmente posso contribuir. E no fim das contas, mesmo minha espiritualidade vai para o saco com a falta de tempo. Muito trabalho, pouca reflexão, vida vazia. Jesus já alertara Marta sobre isso.

Não abri mão, no entanto, de atividades de lazer com amigos no fim de semana. Importante, é verdade, principalmente quando me conformo por um momento que não conseguirei fazer tudo como quero. Fácil então se entregar na hora de se decidir pelo lazer e, também, pelo erro do excesso de lazer. E assim, também não consigo descansar de fato. Descanso a mente, mas não o corpo.

Abri agora pouco um livro de teologia, enquanto não conseguia dormir pensando em tudo que preciso fazer. Bonhoeffer, meu guru teológico, fala das últimas e penúltimas coisas. Não vou explicar. Mas isso me fez pensar na minha semana vindoura. Um pouco de ânimo surgiu e alguma vontade por disciplina.

Vou fazer o que puder. Lembrar que o projeto junto ao governo, embora chato ao extremo, é útil e ajudará pessoas necessitadas. Jesus sempre falou dos pobres e somos chamados realmente a ajudá-los – por amor e para preparar o caminho para que a graça chegue a todos. Tentarei ajudar meus alunos da monitoria. Deveriam ter um monitor melhor, não alguém que busca aprender a econometria que não estudou na graduação. Mas não posso fazer mais do que posso. Meu esforço não pode ser apenas para que eu consiga me sentir bem, mas como serviço ao próximo. Não posso querer ser competente e esforçado apenas para reforçar meu ego, nada é mais angustiante que isso, porque o ego é ganancioso.

Talvez aí Deus me ajude. Preciso escrever um texto para o Conselho Mundial de Igrejas e milhões de idéias vêm a minha cabeça. Mas de que maneira estarei servindo a Cristo? Se não conseguir enxergar isso no dia-a-dia, como escreverei sobre isso? Certamente, estarei mais apto a escrever quando meu ódio ao mundo se desvanecer e amá-lo do jeito que ele é, com todos os seus defeitos. O que vejo de errado no mundo deve continuar sendo visto como errado, mas a minha reação não pode ser daquele que se sente pessoalmente incomodado. Não pode ser uma resposta raivosa e vingativa, para quem o mundo incomoda por não satisfazer meus desejos egoístas. A injustiça existe e minha reação deve ser de amor a esse mundo, onde Deus quer que sinais de graça estejam presentes. Não pode ser o desejo de puni-lo simplesmente, de revoltar-se contra tudo.  Agredir com raiva o que existe não leva às pessoas a mensagem da graça e do amor de Cristo pela humanidade. Talvez, por isso, não posso enxergar minha semana com raiva.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Notas sobre a Suécia

Escrevi sobre todos os países pelo qual passei em fins do ano passado, à exceção da Suécia. Injustiça com os suecos, outro povo que consegue, sabe-se lá como, manter elevado padrão de vida para a sua população. Diferentemente dos noruegueses, são mais parecidos com o que temos em nossa imaginação. São mais fechados, apertam mais seus casacos durante o frio, escondem-se em suas casas em meio à neblina. Foram gentis, mas um pouco frios.

Cheguei direto vindo de Oslo, onde tinha conhecido belas gurias. Kil (pronuncia-se Xil) é uma pequena cidade no interior, onde meu amigo Mattias é pastor. Estávamos perto de Karlstad, na região oeste da Suécia, onde a secularização estranhamente não é tão forte. Mattias é um cara legal e me levou pra conhecer os lugares e conversar um pouco, além de me oferecer um colchão. Conversa pouco mesmo, o assunto às vezes acaba, ele é o típico esterótipo do pastor sueco. Pela manhã, fomos a uma das igrejas em que ele trabalha. Curiosamente, lápides cercavam a igreja. Nos jardins, ao lado da porta, em todo o lado. Cemitérios na Suécia ficam realmente junto à igreja, um costume no mínimo interessante. Despedi-me à noite e parti em direção a Estocolmo.

Logo que cheguei em Estocolmo, dei de cara com um "Welcome to Stockholm, the capital of Scandinavia". Arrogante talvez, mas de fato Estocolmo é a maior cidade da região, com cerca de 1,5 milhão de habitantes espalhados em uma vasta área coberta por trens e metrôs. Minhas amigas Jenny e Elin lá me esperavam e, assim, fui recebido na casa da Jenny com uma bela refeição tipicamente sueca. Rena, batatas e um monte de coisas que nunca saberei o que eram.

Jenny tem dois irmãos. Uma quase nem falou comigo (estava um pouco doente), enquanto o outro, um piá de 9 anos, estava nitidamente envergonhado com a minha presença. Aos poucos, ele começou a falar inglês de forma surpreendente. É triste quando você percebe que suecos de 9 anos falam inglês tão bem quanto você e isso é normal. E quando ele tem 20, como um cara que eu encontrei no trem, ele tem o inglês dez vezes melhor que o seu. Tudo bem, o cara que eu encontrei no trem estava lendo Paulo Coelho em sueco e foi assim que começamos a conversar, mas ele era gente boa. Voltando ao moleque, ele se soltou, mas sumiu em direção à cozinha. Minutos depois, enquanto notícias sobre hockey apareciam na TV sueca e passávamos para o canal finlandês, o irmão de Jenny reapareceu. Ele, o pequeno Martin, trouxera consigo uma bela esfera branca que ele segurava com as duas mãos. Uma bola de neve.

Olhei pasmo para a bola de neve que ele estava me oferecendo como presente. Jenny explicou que Martin soubera que um brasileiro vindo da selva e que nunca vira neve estava chegando pra passar dois dias na casa deles. Com medo que não nevasse na semana que eu chegasse (o que de fato se confirmou), ele fez a bola de neve na semana anterior e guardou no congelador. Uma surpresa divertida definitivamente. Crianças muitas vezes nos fazem rir de forma realmente espontânea.

Passeei por Estocolmo e vi que a cidade era bonita, embora estivesse frio e infelizmente escuro. Mulheres bonitas também, mas não como as norueguesas simpáticas e lindas de Oslo. De qualquer forma, pude conhecer um pouco dos costumes de Natal da Suécia, suas atividades e costumes. Assisti inclusive um espetáculo musical de Natal em uma igreja velhíssima de madeira e pude cantar hinos em sueco. Um costume muito comum entre os suecos é cantar em conjunto. Algo da igreja que ainda restou no costume, embora Deus há muito já esteja enterrado para a maioria deles. Uma pena: belos hinos que poucos ainda cantam de coração.

Amigos meus estão na Suécia agora e talvez possam contar melhor o que ocorre por lá através desse blog, mas eu espero um dia poder voltar e ficar mais tempo por lá e aprender mais sobre esse curioso povo.

segunda-feira, 23 de março de 2009

A lenta marcha de Cuba

Ondas calmas de um límpido mar azulado chegam à praia harmoniosamente: enquanto algumas ondas quebram na areia de Varadero em Cuba, outras começam a se formar. E assim se segue sucessivamente. Absurdamente azul esse mar, penso eu. O que explica mesmo o azul que vemos na água? As aulas de física perdidas em algum canto do cérebro não se recuperam. Definitivamente não entendo porque enxergo meus pés na água transparente ao meu redor, enquanto que levantando ligeiramente a cabeça, tudo passa a ter um tom forte de azul.

Afastando-se da praia, está o estranho mundo dos habitantes de Cuba, começando pelo hotel. O setor de turismo recebe viajantes do mundo todo, que gastam seus euros e dólares no país, deixam um pouco de gorjeta e permitem que um garçom de hotel ganhe mais do que um médico muito bem formado em Cuba. Um pouco mais adiante, na porta da rua, charutos e garrafas de rum são precificados com a moeda para turistas, diferente da moeda local do dia-a-dia do cubano. Subitamente, um carro da década de 50 com pintura impecável passa por nós. É um milagre que esteja andando. Não obstante, outros carros da mesma época e alguns Ladas passam em seguida. Depois da Revolução em 1959, importar carros de países capitalistas se tornou praticamente impossível. Da entrada do hotel, entro no ônibus escolar de decênios atrás, que nos leva até o Seminário Teológico de Matanzas. É lá que a Comissão das Igrejas em Assuntos Internacionais, importante estrutura do Conselho Mundial de Igrejas, se reúne em março de 2009. 

A pobreza está em todo lugar, mas não uma pobreza de pessoas sem educação.  Com pinturas desfeitas nos prédios e falta de infra-estrutura, é verdade, mas com pessoas instruídas, mesmo vivendo em condições complicadas. Nossos irmãos da Europa Oriental, embora reconheçam o papel nefasto do embargo norte-americano e a abertura muito maior do regime cubano em termos relativos, lembram de seus tempos de opressão comunistas. Alguns africanos e latino-americanos olham com esperança para Cuba, querendo crer na solidariedade socialista e identificando-a com a ética cristã. Ingênuo, provavelmente. 

Músicos do fantástico coro da cidade de Matanzas, após venderem seus CDs para nós, batem papo comigo. Segundo eles, as pessoas não se importam muito com a política. O que as incomoda é a falta de dinheiro e bens essenciais. Gostariam de mais abertura, maior acesso aos mercados, mas valorizam seu bom nível de educação e sua saúde, resultado das políticas que vieram após a Revolução. A tirania de Fidel significou melhora na vida de muita gente. No entanto, isso não muda o fato dele ser um ditador e decidir os rumos do país como bem entende. 

A música faz parte da vida deles: a qualidade é impressionante. Fazem festas o tempo todo, são muito receptíveis e amáveis. Mudanças constitucionais no início da década de 1990 permitiram a volta oficial da religião em Cuba. Nas igrejas históricas em Havana, comunidades muito ativas prestam culto. Que continuem as mudanças. Que os mercados possam chegar a mais pessoas, que os Estados Unidos derrubem esse danoso embargo comercial. Que os cubanos não percam suas conquistas em educação e saúde nesse processo de abertura. Que Deus esteja com Cuba nessa lenta marcha em direção ao desenvolvimento. Amém.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Livros

Cresci lendo livros. Não porque eu assim o quisesse, mas porque fui literalmente obrigado pela minha diligente mãe. Na época, assim como hoje, era um cara bem preguiçoso. Mas com o estímulo de minha irmã, que definitivamente não é preguiçosa, a leitura constituiu-se um hábito e até um gosto depois de algum tempo. Era um bom passatempo, tanto que li coisas que não deveria ter lido (não, não lia histórias eróticas, embora o início da adolescência seja hormonalmente pérfido). Talvez 13 anos não seja a melhor época da vida para ler A Morte de Ivan Ilitch ou um monte de outros livros que acabei lendo e não aproveitando coisa alguma...

Depois de um tempo, livro não era apenas gosto. As recompensas por ser uma “pessoa que lê” (grande merda) apareceram. Somado ao bom desempenho em sala de aula, a leitura tornou-se um dos pilares de minha auto-estima intelectual, um alimento à vaidade, um meio de se tornar superior aos outros na eterna competição em que vivemos aqui nesse mundo. A leitura era uma bela arma em conversas de boteco, um meio de mostrar erudição. Eu já lera quase tudo (ou ao menos pensava isso) e foi talvez aí que perdi muito do gosto pela leitura. Lia para dizer que li, não pela leitura em si. Em suma, a leitura se tornou um meio de ser mais bem aceito pelos outros.

No entanto, ainda restava alguma coisa do velho Thomas que gostava de ler. Alguns livros, que por acaso pegamos em um dia enfadonho de verão, marcam nossas vidas de alguma forma e fazem-nos voltar a querer ler avidamente em busca de respostas a perguntas que fazemos a nós mesmos. Quando temos preguiça de ver muitos filmes, o livro é um dos poucos meios restantes de se sentir identificado com algo ou alguém, de pensar em idéias novas, de abrir um pouco a cabeça.

Talvez John Steinbeck tenha sido um divisor de águas. Em um domingo qualquer, a biblioteca da igreja estava doando livros velhos. Um volume amarelado (tanto a capa quanto às páginas) de uma velha tradução de A Leste do Éden me pareceu atraente: aquele cheiro inconfundível de traças, digno de um antiquário.  Tendo apenas ouvido falar desse autor americano e que descobri depois que ganhara o Nobel, guardei o livro por anos em uma estante acumulando um bocado de pó. Enfatuado em um dia quente de férias na cidade, resolvi pegá-lo e espirrar um pouquinho no calor. Tenho um pouco de pena até hoje de tê-lo emprestado e perdido aquela tradução da década de 40, embora tenha feito alguém mais ler Steinbeck, um dos meus deveres nesse mundo. Após uma chuvarada na mochila de meu amigo, recebi de volta uma tradução mais nova e pior. Felizmente, existe outra nova tradução que aparentemente é boa.

A partir desse livro, Steinbeck conseguiu me deixar uma impressão profunda, apesar de meu excesso de racionalismo frio. É um autor que fala de sentimentos comuns a todos. Seus personagens são pessoas simples, mas sempre mostrando de forma clara as paixões de qualquer ser humano. A busca pela aceitação, presente em todos, mesmo adultos maduros, aparece no comportamento dos personagens ao longo de todo o livro. Uma coisa engraçada para alguém que também através da leitura buscava um pouco de aceitação.

Evidentemente, outros livros ficaram na minha cabeça antes e depois. Não posso deixar de fazer um tributo ao Mundo de Sofia (acho que muitos gostam desse livro), que eu folheio até hoje quando vai-lá-Deus-saber-por-que procuro informações sobre algum filósofo e não posso, não consigo ou não quero ler o original. O Contraponto de Aldous Huxley (aquele do Admirável Mundo Novo) também me fez pensar, assim como alguns livros teológicos que mudaram meu jeito de entender a fé, essa coisa tão estranha que alguns ainda insistem em ter.

É preciso alguma maturidade para ler e entender livros. Não que eu seja maduro, mas alguns livros exigem vida prévia. O problema é que, até que alguns livros realmente falem contigo, é preciso que a leitura tenha se tornado um costume (pelo menos para os preguiçosos de natureza como eu). Quem me dera ter lido Crime e Castigo depois de ter entendido o que é a idéia cristã da graça: aquilo que só depois de 22 anos freqüentando uma igreja luterana, arauto da graça, eu entendi com clareza como algo concreto na minha vida.

Talvez devesse ler Crime e Castigo de novo agora. Não tenho certeza, mas acredito que só sabendo com clareza o que é graça é possível entender direito esse livro. Deve-me faltar algo, mas eu não entendo porque esse livro é tão famoso se a idéia mais fundamental do livro é pouco popular. Crime e Castigo não acaba na culpa – esta sim comum a todos -, e talvez por isso, o livro não tenha um bom título:  parece faltar um pedaço. Mas não se preocupem, longe de eu querer ser maior que Dostoievski. 

sábado, 24 de janeiro de 2009

Nomadismo

Minha vida como mestrando foi muito conturbada. Cheguei a São Paulo no dia 30 de dezembro de 2006 com meu pai, que só veio ajudar no começo, e me ajeitei numa pensão. Passei o réveillon por lá e dormia sempre em um quarto que tinha paredes de divisórias feitas de plástico. Para completar, um dos meus vizinhos de pensão tinha um microfone dentro da garganta e sempre arranjava companhia para fazer café às duas da manhã na cozinha, muito próxima ao meu quarto. Ele realmente falava baixo, mas sua voz ressoava por toda a casa. Tenho propensão à insônia até no mais absoluto silêncio. Não preciso dizer mais nada

Tendo começado alegremente as aulas no dia 3 de janeiro, consegui, depois de muitos cafés (meus e do meu vizinho de voz ressoante) e noites mal-dormidas (tanto devido a estudo quanto devido a cafés alheios), arranjar um apartamento para morar. O menor apartamento de dois quartos que eu já vira, em condições que não eram das melhores, apesar da boa vontade da proprietária, pessoa aberta para ouvir seus inquilinos. Morei com um cara que já tinha morado com mais de centenas de pessoas em sua vida de estudante, o lendário TTF. Torcedor religioso e irracional do Galo, ele foi parar no BNDES um ano depois para agitar as noites cariocas, deixando-me sem alternativas para continuar morando no apartamento dividindo os custos. O remédio foi sair.

Os novos alunos do primeiro ano do mestrado (eu já estava no segundo) receberam-me amistosamente em sua elegante república. Tudo isso até perceberem que, por trás de meu fenótipo oriental metódico e esforçado, escondia-se o maior bagunceiro da casa (talvez concorrendo com outro colega, o tal de GT, pessoa de traços psicológicos sui generis). GRA, um mineiro também lendário que estudava deitado na cama o dia inteiro parecendo um bicho-preguiça; e HD, um brasiliense que joga cricket e que fazia o papel de mãe de GT, controlando suas travessuras, sofreram com minha magnânima falta de organização. Sorte deles que eu não tenho barba para deixar vestígios pela casa.

Antes de eu chegar, porém, morava um roedor na casa, que fora parar no Chile para fazer um curso. A iminente volta de RRG para o Brasil levou meus colegas ao desespero: cinco pessoas em um apartamento de três quartos era impensável, principalmente tendo Thomas entre eles. O remédio foi enviar Thomas de volta à vida nômade. Malandro e Guilherme, também amigos conhecidos na pós-graduação, tinham um quarto vago por uns meses, onde me instalei. Enquanto isso, comecei a procurar por apartamentos para janeiro. Meu ex-colega gaúcho Felipe teria que em breve abandonar o apartamento em que morava, vendido pelo seu proprietário sem prévio aviso (aluguel sem contrato dá nisso). Após muitas visitas e ligações, não encontramos apartamento, e fomos parar no meu ex-apartamento, no qual vivi com o velho TTF. Por circunstâncias incomuns, ele se encontrava vago seis meses depois de tê-lo abandonado.

O surgimento de uma boca de fumo na praça em frente de casa, a presença de três viaturas de policiais e a chegada de Juninho, amigo de UFRGS que tinha vindo fazer mestrado, foram fatores suficientes para decidirmos por sair. Conversamos com a proprietária e as coisas meio que se acertaram. Desde minha chegada a São Paulo, tinham se transcorrido para mim dois anos e cinco mudanças. Procurando apartamentos, entramos em vários que não nos agradaram. Passamos então pelo ex-prédio em que o Felipe morava, para que ele pudesse buscar correspondência. Por acaso, havia um apartamento legal e barato pra alugar: a sexta mudança é iminente.

Mais inusitado que isso, só encontrar o José Genoíno do PT em um supermercado de bairro em uma parte não muito fina do Butantã. Particularmente, no supermercado Violeta que fica na rua Boturoca. Isso é lugar de se encontrar ex-deputado federal? De qualquer maneira, logo devemos sair de perto desses lugares, onde Genoíno, bocas de fumo e estudantes da USP convivem em paz e harmonia. Quem sabe agora eu me torno sedentário e faço a revolução que meus antepassados fizeram no neolítico. Talvez a instabilidade do nomadismo explique a situação paleolítica da minha dissertação de mestrado.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Se os tchecos não falassem tcheco...

No frio e no escuro, fui em direção à plataforma do trem na estação de Fulda, alguma cidadezinha no meio da Alemanha. Dois oficiais da Deutsche Bahn conferiam os bilhetes dos poucos passageiros do trem noturno em direção à Praga, capital da República Tcheca. O trem era antigo, mas como estava praticamente vazio, deitei-me com certo conforto sobre meu próprio mochilão. Já tinha passado da meia-noite, mas eu só chegaria em Praga às 8 da manhã, após uma surpreendente tranqüila noite de sono.

Já havia amanhecido, mas a estação de Praga conservava ainda uma iluminação turva. É como se os anos de comunismo tivessem deixado marcas impossíveis de se apagar. Por um momento, lembrei-me do livro do autor tcheco Kundera, que lera recentemente. A estação de Praha Holešovice não era moderna como as da Alemanha e em quase nada ajudava um pobre turista a encontrar o metrô para ir à estação central de Praga (em tcheco, Praha hlavní nádraží). Consegui, após alguma luta, comprar dinheiro tcheco e ligar para uma de minhas amigas que me esperavam na estação central. Contei-lhes da minha aflição em não entender uma palavra daquela estranha língua: era a primeira vez que de fato eu me deparava com uma língua eslava. Ainda que o alfabeto não fosse cirílico, de nada adiantava eu conhecer as letras quando oito consoantes e uma vogal juntas formavam uma palavra pronunciável (pelo menos os tchecos diziam que era pronunciável e eu ingenuamente acreditei neles).

A República Tcheca não é pobre, apesar da impressão deixada pela estação de trem. Segundo contaram minhas amigas tchecas, eles são algo entre a Europa Oriental e a Europa Ocidental, tanto em questões culturais como em questões de renda. Os palácios e antigas construções de Praga são extremamente bonitos: tudo conservado nas melhores condições. Conseqüentemente, o fluxo de turistas é imenso. Em geral, um bando de italianos gesticulando e falando alto, como é típico deles: aquela entonação característica, as vogais bem abertas com um ligeiro cantarolar irritante para alguns, maravilhoso para outros.

Conhecer os belos prédios tchecos, que não foram destruídos por guerras como aconteceu na Alemanha, é algo que vale bastante a pena. A estátua do famoso pré-reformador Jan Hus acima na foto é a prova disso. Mas ter guias simpáticas de lá sempre ajuda, principalmente se são suas amigas. Com elas, fui até para um culto da igreja protestante tcheca. Na Suécia, sabendo algumas regras de pronúncia era possível cantar os hinos. Na República Tcheca, não. Preposições como “z” não são pronunciáveis na minha cabeça, muito menos acentos circunflexos virados de ponta-cabeça em cima de consoantes. Mas para eles é: minha amiga Martina não escondia o riso em relação à minha dificuldade. Chegado o momento da pregação do pastor tcheco, achei que era um excelente momento para observar a arquitetura da igreja.

De qualquer forma, gostei muito de Praga. Minhas outras amigas Žaneta e Ester tinham alguma dificuldade no inglês, mas a gente se comunicava do jeito que dava, com a ajuda da Martina. Por duas vezes, sentamos para beber algumas das famosas cervejas tchecas. Embora eu não seja exatamente um cervejeiro, “breaco” (como dizem os paulistas), ébrio ou qualquer coisa parecida, a verdadeira cerveja Pilsen, a Pilsner Urquell, tem um excelente gosto amargo e característico. A Budweiser tcheca é muito, mas muito melhor do que a Budweiser americana. Com amigas, construções antigas e bonitas, e boas cervejas, fica fácil querer voltar pra Praga.