sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Obsessão

"Canetas alinhadas em cima da classe; razonetes, tabelas e gráficos desenhados à régua; teses e trabalhos escritos durante a madrugada e revisadas dezenas de vezes; gavetas com as marcas dos objetos que estão sempre no mesmo lugar; não tomo café porque faz mal à saúde, me vê um chá aí; cortei os doces e tudo mais que é doce na minha vida; obrigado pelos parabéns, agora parem de pular e gritar, por favor; o almoço tem que ser em ponto, estás atrasada de novo; nove não é o suficiente, alguém estava estudando enquanto você estava aí feito bobo deitado na cama; as linhas desse edifício não estão corretas; essa maquete está um pouco fora de proporção; o nariz do personagem está mal-desenhado; as folhas têm que ser dobradas em três pedaços, não dois, existe um padrão; não, não fumo, nunca fumei, nunca fumarei; não bebo, depois acabo perdendo o controle; emoções também devem estar sob controle, abraços devem ser evitados, beijos também; não sinto saudades; maldito ônibus atrasado por dois minutos; olha a meia fora da gaveta, isso estraga as gavetas, você não faz nada direito?; formato seus trabalhos nas normas da ABNT; Deus quer que você leve uma vida regrada, sóbria e ascética; se é pra fazer, faça bem feito; se você quer que Deus te abençoe, como você oferece apenas umas míseras moedas para ele?; você tem que ser uma pessoa produtiva; você quer ser reconhecido ou ter valor? Faça por merecer; você tirou 7 em inglês? Que tipo de profissional você acha que vai ser?; com esforço conseguiremos tudo, até a salvação." Em cinco minutos, todas essas imagens e sons tinham vindo até a cabeça do rapaz, que se revirava inquieto na cama.

Dormir não estava mesmo muito fácil. “Faço tudo bem feito, mas onde está o limite?”, perguntou ele para si mesmo. Ligou o abajur e procurou algum livro no seu criado-mudo. Havia alguns ali. Abriu seu livro do García Marquez, “Memórias de minhas putas tristes”, que ele já tinha começado a ler. Depois de algumas páginas, a seguinte frase da página 74 o perturbou:

"Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, casa assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente em ordem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra a minha negligência; que pouco generoso para encobrir minha mesquinhez e sempre penso o pior, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que ninguém saiba como pouco me importa o tempo alheio. Descobri, enfim, que o amor não é um estado da alma e sim um signo do zodíaco."

“Se o amor for um signo, ele nada pode mudar nesse mundo...” – pensou o rapaz novamente., suspeitando da afirmação. Fechou o livro. Ligou o computador, o Facebook, o Orkut, o MSN, o Twitter, o MySpace e o Jango. As caixas de som começaram a tocar a canção “Walk On” do U2:

And love, it's not the easy thing
The only baggage, that you can bring
Not the easy thing, the only baggage you can bring
Is all that you can't leave behind

[…]

All that you fashion, all that you make
All that you build, all that you break
All that you measure, all that you feel
All this you can leave behind

All that you reason, all that you care
(It's only time and I'll never fill up all my mind)
All that you sense, all that you scheme
All you dress up, and all that you see
All you create, all that you wreck
All that you hate…

Ignorou as pencas de mensagens de amigos/as (?) no MSN e desligou tudo, à exceção do abajur. Abriu um livro de poemas de Dietrich Bonhoeffer, seu teólogo preferido - sim, desde que ganhara o livro, tinha agora um teólogo preferido:

“Sustentado apenas pelo mandamento divino e pela tua fé,
e a liberdade acolherá teu espírito com júbilo”.

"Apenas, mais nada. É assim que somos livres". Foi a última coisa que ele pensou antes de dormir.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Diferentes iguais

Meu primeiro torneio de futebol ocorreu no jardim de infância, quando eu tinha cinco anos de idade. Foi pedido a todas as crianças que trouxessem uma camisa de futebol. Transmiti o recado aos meus pais, que não vendo solução melhor para isso, uma vez que eu não tinha qualquer fardamento futebolístico, vestiram-me com uma camisa que tinha um símbolo no lado direito do peito e disseram-me que era a camisa de um time de futebol coreano.

Um de meus colegas chamado João Paulo notou a diferença e perguntou que camisa era aquela. Afinal, ela em nada se parecia com uma camisa de futebol. Não sei se acreditei nos meus pais ou se foi meu primeiro auto-engano (para eu me lembrar até hoje desse episódio), mas apenas repeti o que meus pais tinham dito. Acho que o João Paulo, com sua camisa do Botafogo (vai entender porque ele tinha uma camisa do Botafogo estando em Porto Alegre), acreditou na história.

Ele virou as costas e, como sempre, percebi a sua estranha verruga logo abaixo da nuca. Uma daquelas peludas, mas separada do couro cabeludo, uma ilha de cabelos com forma geométrica irregular. E peluda, como uma daquelas aranhas caranguejeiras. Sempre achei aquilo muito estranho, como se não coubesse em meu platônico mundo das ideias infantil. Mas talvez ele ou outros achassem estranho meus olhos puxados, assim como também achassem(os) estranho uma pessoa negra no meio deles – principalmente em uma cidade predominantemente branca, ainda mais nos estratos médio e alto de renda.

Nessa turma do jardim de infância, havia também a menina mais bonita – como sempre. Era a Débora, com suas duas chiquinhas simétricas em cada lado da cabeça. Foi minha primeira frustração amorosa, uma vez que ela era “namoradinha” do Luis Afonso, cuja principal característica era ser “babão”. Não que eventualmente minha saliva não escorra involuntariamente de minha boca enquanto durmo na biblioteca até hoje, para, logo após observar maravilhado a arte feita na mesa, olhar para todos os lados a fim de verificar se não fui descoberto em flagrante. Mas eu não podia entender ou tolerar que a guria mais bonita gostasse do menino que balbuciava fazendo bolhas de saliva.

Assim como as crianças, somos pouco tolerantes ao natural. O diferente às vezes incomoda e não sabemos como lidar com ele. A saída é por vezes é uma piada infeliz ou fechar os olhos para o mundo, criando um outro mundo paralelo quando convém.

Fiquei feliz no último Congresso Nacional da Juventude da igreja a qual pertenço, a igreja de confissão luterana. Era difícil fazer os 800 jovens, em sua maioria adolescentes, ficarem quietos em apresentações de corais de idosos ou de orquestras infantis. Mas em um momento específico, quando passou um vídeo no telão mostrando uma jovem cega “escrevendo” em braile o tema e o lema do congresso, um silêncio sepulcral tomou conta do ginásio. Nem os grilos do pátio se manifestaram. Ali, aqueles jovens, com todos os seus defeitos, mas que se consideram cristãos e luteranos, deram-se conta de que o diferente era igual. Afinal, somos todos filhos e filhas de Deus, igualmente amados e valorizados.

Todos então bateram palmas na linguagem dos surdos-mudos, balançando ambas as mãos em silêncio, sem exceção. Respirei fundo e fiquei pensativo. Não é sempre que acreditamos que esse mundo ainda tem salvação.

*Agradeço ao Amir Straub por parte dessas ideias, advindas após uma reunião que organizamos no grupo de jovens de nossa paróquia, a JESP, sobre a música “Ninguém=Ninguém” dos Engenheiros do Hawaii e com base na passagem bíblica de I Coríntios 12.12-31.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

(Não) somos porque temos

Quando eu era pequeno, eu e minha mãe costumávamos caminhar incansavelmente pela Rua Voluntários da Pátria no centro, uma espécie de “25 de Março” dos porto-alegrenses, procurando por produtos baratos. Por exemplo, camisetas brancas da Hering. Embora existissem já lojas da Hering em pontos mais nobres da cidade, não fazia o menor sentido na cabeça da minha mãe comprar pelo dobro do preço o mesmo produto. Melhor era entrar em uma dezena de lojas comparando os preços, a fim de não perder um único centavo (mesmo que o gasto com a sola do sapato acabasse talvez sendo superior ao dinheiro poupado).

Meus pares de tênis, lembro-me bem, duravam de um a dois meses até ficarem completamente destruídos e furados. Afinal, pés de crianças crescem, não vale a pena comprar coisa melhor. Certa vez, meu pai trouxe sapatos para mim e para minha irmã, cujos tamanhos deveriam estar próximos de 30, o que causou uma séria briga conjugal. Meu pai era pão-duro, mas certamente minha mãe era mais radical.

Uma certa dose de razão havia no posicionamento da minha mãe. Além de ela ter crescido em um contexto de guerra, em que a escassez era extrema na Coreia, as condições do Brasil não eram das melhores. A inflação incessante engolia o poder de compra das famílias rapidamente e a instabilidade econômica era grande no começo dos anos 1990. Além disso, meu pai estave em fases mal-sucedidas financeiramente naquele período, em que dívidas apareciam e a crise era iminente.

Na época, eu estudava em escola pública, carregando alguns milhares de cruzeiros no bolso que só serviam para comprar balas. Havia, obviamente, colegas bem mais pobres do que eu. Lembro de um colega filho de empregada doméstica que morava em Viamão e cujas roupas esfarrapadas evidenciavam sua condição. Embora em situação difícil por vezes, minha família poderia ser considerada da classe média – a situação era difícil porque tínhamos um padrão de consumo de classe média. Outros colegas tinham melhores condições, é verdade, uma vez que a escola pública a que me refiro estava em um bairro de alta renda (Moinhos de Vento). Mas pouco me importava em caminhar por horas para comprar uma camiseta ou usar um par de tênis que, depois de andar meia quadra, já me deixava só com a meia. Tudo bem que os amigos da família eram mais ricos, assim como as famílias da comunidade coreana em geral, mas eu não me importava muito com esse fato.

Entrei no Colégio Militar e lá as pessoas em geral pertenciam à classe média ou média alta. Não eram ricos como nas escolas particulares mais famosas, mas não lembro de ter conhecido pobres. As famílias dos alunos do Colégio Militar eram famílias de classe média que valorizavam a educação e que almejavam o sucesso de seus filhos - ou seja, que eles tivessem condições para galgar a ladeira em direção a classes de renda superiores. Minha igreja também, predominantemente de classe média alta, me fornecia amigos com boas condições financeiras. Era natural que meu padrão de consumo passasse a refletir isso. Posteriormente, na UFRGS, meus colegas e amigos eram das classes alta e média alta. E aos poucos, fui perdendo a simplicidade no consumo, embora continuasse um pouco sovina como meus pais. Minha irmã entrou na Medicina, eu na Economia: o contexto e as companhias eram outras.

Nesse processo de entrar na vida adulta, tenho a impressão que perdi algo no meio do caminho. Minha família está em melhores condições financeiras hoje, eu mesmo ganho um salário. Posso manter um nível de consumo similar aos das pessoas que me rodeiam. Mas a simplicidade e os valores mais básicos da vida parecem ter se perdido um pouco. Torna-se mais importante beber Guinness (embora essa cerveja seja de fato muito boa) do que beber cerveja barata com velhos amigos em algum canto. É como o alferes do conto de Machado de Assis que só se enxerga no espelho quando está vestindo seu uniforme. E cada vez mais, me afasto da realidade social da maioria das pessoas que vivem nesse país. Não é culpa por consumir, é apenas ter percebido que posso ter entrado, sem perceber, no jogo da nossa sociedade. O valor das pessoas (e, portanto, meu próprio valor) não está no ter, mas isso não é o que a sociedade tenta nos dizer. Mesmo sabendo disso, não é difícil sermos engolidos pelos ditames do mundo.

sábado, 12 de junho de 2010

Ideias esparsas

Tenho sido incapaz de escrever ultimamente. É estranho que existam épocas em que meu cérebro simplesmente não consegue expressar no papel o que tenho pensado. Também tenho sido incapaz de ler muito, o que sempre foi um costume meu. Tenho a impressão de que meu novo trabalho como professor, mesmo sendo de apenas 12 horas por semana, e a minha insistência em continuar pesquisando ou dando aulas particulares, têm me impedido de pensar, ler e escrever. Ocupado com as tarefas e os compromissos, abdico de estruturar meus pensamentos.

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Recentemente, estava lendo um livro escrito por dois filósofos (Jean Hampton e Jeffrie Murphy). Uma amiga minha, que fez mestrado em filosofia na Inglaterra, emprestou-me o livro, cujo título é “Perdão e Misericórdia” (Forgiveness and Mercy). Não é um livro de igreja. É um livro com dois filósofos pensando sobre o tema: Hampton até é cristã, mas Murphy não é. Os textos dos autores se intercalam, mostrando um interessante debate entre os dois em exercícios que, sem dúvida, envolvem intensa introspecção. Quando os autores tratam de conceituar sentimentos relacionados a ódio e ressentimento, é difícil não se identificar com alguma descrição. Tem sido uma leitura interessante.

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Ao mesmo tempo, tenho pensado na relação entre piedade religiosa e moralidade conservadora. É incrível como as pessoas tendem a associar fortemente esses dois aspectos. Talvez porque as pessoas mais piedosas tendam também a ser as mais conservadoras moralmente (e às vezes politicamente). Família e igreja/religião são muito ligadas, porque são os pais que costumam [tentar] passar sua religião para os filhos. Acredito que na verdade os pais passam uma caixa cheia de ferramentas. Nela estão contidos os valores que eles professam, alguns muito úteis e até atemporais e universais, outros bastante anacrônicos e refletindo a época e o local em que foram criados. Mas também está contido a religião, a piedade, a fé daqueles pais. Os filhos então pegam a caixa e, em geral, decidem em termos de ficar com a caixa inteira ou jogá-la fora com tudo o que tem dentro. Falo isso porque eu mantive o básico da fé de meus pais e outras pessoas influentes na minha formação religiosa e moral. Entretanto, ao manter isso, tenho dificuldades para jogar outras coisas fora, embora eu racionalmente saiba que elas devem ser jogadas fora. Ou melhor, tenho dificuldade de me livrar de certos hábitos e costumes que são inclusive incoerentes com a fé que eu professo, mas que geralmente as pessoas piedosas costumam praticar (lamentavelmente). Acreditar em Deus e na fé cristã não significa adotar todas as posições conservadoras e absurdas muitas vezes adotadas pela maioria dos cristãos. Muito pelo contrário, a fé cristã deveria ser uma fé libertadora, ainda que responsável. Por exemplo, não são os assim chamados cristãos que mais julgam o comportamento alheio quando justamente Cristo pede-nos para não julgarmos os outros?

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O post anterior a este esteve por muito tempo no topo da lista (esse aí embaixo). Lamentavelmente, um post polêmico e que tenho dúvidas até agora se deveria tê-lo escrito. Apagá-lo, no entanto, seria precipitado - pelo menos é o que penso no momento. Não queria julgar pessoas com aquele texto, até porque meus personagens muitas vezes são a mistura de várias pessoas, incluindo eu mesmo. Espero que os leitores leiam os outros e possam ver que nem sempre minhas idéias estão esparsas e desorganizadas.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Sozinha

Em um encontro de estudantes, o samba tocava alto dentro do pavilhão. Uma menina morena de olhos verdes sambava sozinha, enquanto alguns rapazes não conseguiam esconder sua vontade de observá-la, mesmo quando acompanhados de suas respectivas namoradas. Não foram poucos os olhares femininos raivosos para namorados e para Rafaela, a garota que sambava sozinha. Naquele momento, ninguém se sentia homem o suficiente para se aproximar dela. Minutos depois, ela poderia facilmente escolher na cama de quem acabaria.
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Jorge, engenheiro, era o namorado oficial de Rafaela e eles se encontravam apenas nos fins-de-semana, uma vez que ele morava em outra cidade. Mas Rafaela gostava também muito da companhia de Jonas, rapaz que já estava no doutorado e que a levava a lugares diferentes e interessantes. Outro que ela encontrava frequentemente era Carlos, que trabalhava no mercado financeiro e a levava para bares refinados, mas cujo ar de menino carente da mãe nas noites de sexo deixavam-na um pouco enojada. Carlos acabou substituído pelo filósofo Renato, músico excelente que sempre estava com um violão na mão e sempre muito carinhoso. Ricardo era uma companhia eventual, que a fazia se sentir viva, mas incapaz de gestos de carinho. Nessa época, Rafaela tinha uns 23 anos e achava que estava levando uma vida equilibrada.

Sua amiga Fernanda era o oposto dela: namorava há cerca de dois anos, mas já levava uma vida de casada há quarenta. Seus fins-de-semana eram preenchidos com passeios no parque e filmes no sofá. Mas Rafaela sabia como Fernanda na verdade invejava a vida dela, embora ela nunca tivesse tocado no assunto. Tinha percebido como Fernanda reagira negativamente ao ver um recente filme de Woody Allen, Vicky Cristina Barcelona. Ela se revoltou com o comportamento da comprometida Vicky, noiva de um rapaz boa praça, mas sem graça, que não resiste aos encantos de um mulherengo espanhol. Fernanda carecia de aventuras e a vida de Rafaela parecia ser uma grande aventura aos olhos da pacata Fernanda.
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Aos 29 anos, tinha um excelente emprego que rendia viagens para o exterior. Agora tinha “amigos” homens em diversas partes do mundo. Por outro lado, suas amigas começaram a casar e ter filhos. Do seu grupo da faculdade, só tinham restado ela e Fernanda solteiras (esta última tinha se separado do namorado após seis anos de namoro e então começou a seguir os passos de Vicky). Mas as excitantes viagens, acompanhada por homens diferentes em locais diferentes, supriam a necessidade de Rafaela de estar sempre rodeada. Lembrava com prazer de suas noites na Rússia e no México, dos originais champanhes bebidos em Paris e de passeios na Broadway. Enquanto isso, foi madrinha de casamento oito vezes, participou de 22 chás de bebês e se viu cada vez mais isolada.
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O tempo passara. Tinha 36 anos e estava visivelmente envelhecida. Mas ainda tinha resquícios da beleza de outrora, os mesmos olhos verdes contrastando com os cabelos escuros – talvez até com mais charme, aquele que só a maturidade pode dar. Filhos já não podiam fazer parte dos planos e a solidão era preenchida com homens, como sempre fora, só que agora em geral divorciados ou viúvos. Mas ela sentira que as coisas não eram tão fáceis como antigamente. Ainda viajava a trabalho para a Europa, onde ficaria na casa de mais um amigo - desta vez na Suíça. No avião, começou a gostar da conversa com um garoto franzino de 21 anos, quando percebeu, já tinha cedido terreno para o rapaz.

Chegou à Suíça após dar o número do celular para o jovem. Após as reuniões, hospedou-se na casa de seu amigo, um advogado de 57 anos. O casal momentâneo resolveu subir uma montanha dos Alpes Suíços. Por alguns momentos, ele foi fazer perguntas ao guia e a deixou sozinha contemplando do alto os dois lagos, divididos pela pequena cidade de Interlaken. Centenas de metros separavam Rafaela dos cristalinos lagos lá embaixo. Algo muito mais forte que a gravidade parecia chamá-la para se encontrar com as águas azuis do lago. Não teve dúvidas de que deveria obedecer o chamado.

domingo, 21 de março de 2010

Tortura

Lembro de certa vez, aos 12 anos, visitar uma exposição sobre tortura. Havia instrumentos ou réplicas deles de diversos tipos. Particularmente chocante foi ver uma enorme estaca, cujo objetivo fora a prática do empalamento há centenas de anos. De acordo com a explicação, o empalado era colocado na estaca através do ânus e não morria instantaneamente. Às vezes a pobre criatura demorava mais do que um dia para morrer de hemorragia, pelo menos na versão dos assírios, povo que tinha certo gosto por empalar prisioneiros de guerra e expô-los defronte as cidades que pretendiam invadir.

A partir dessa experiência (de ter conhecimento desse fato, não de ser empalado), compreendi o absurdo que é a tortura. Infelizmente, outras formas de tortura continuaram sendo praticadas em alguns lugares (inclusive em ditaduras que ainda hoje persistem). Por outro lado, muitos passaram a utilizar métodos menos dolorosos de execução. Em especial, lembro do uso das guilhotinas na Revolução Francesa no final do século XVIII. Em um livro comemorativo do segundo centenário da Revolução, li quando criança que o médico Guillotin propôs o uso da guilhotina por motivos humanitários: ela proporcionava uma morte mais rápida e menos dolorosa e, assim, a guilhotina se tornou um instrumento famoso (e excessivamente usado) na Revolução. Em relação aos assírios, era uma grande avanço, embora o próprio Guillotin tenha sido executado pelo instrumento, assim como também famosos cientistas como Lavoisier.

Em um momento em que a pena de morte não era discutida, a sugestão de Guillotin parece ter sido uma melhora substancial. Se a morte era inevitável, a guilhotina era talvez uma das formas menos dolorosas. Embora eu seja contra a pena de morte, acredito ter sido bom alguém ter inventado a cadeira elétrica. Pelo mesmo motivo, repudio veementemente toda forma de tortura, que mata lentamente e dolorosamente, como se a vida humana não tivesse qualquer valor - por pior que tenha sido o crime cometido.

Alguém bastante pessimista já disse que a vida é um constante morrer. Outro já disse que começamos a morrer quando nascemos. A pergunta que fica é: porque às vezes nos matam aos poucos quando clamamos por um tiro de misericórdia? Quando estamos sendo empalados, a guilhotina se torna muito simpática. Entretanto, mesmo involuntariamente devido a alguma análise míope, somos empalados e definhamos aos poucos. E eu não estou falando de eutanásia.

Às vezes, peço pela guilhotina ou pela absolvição. Quando existe esperança, é a possibilidade de absolvição que às vezes nos motiva a aguentarmos a tortura. É a esperança que Deus nos conceda novamente vida abundante.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Mimada


Era uma criança mimada, seus pais faziam tudo o que ela pedia

Não buscava diversões, as diversões vinham até ela

Assim como os amigos, a família para servi-la existia

Mas era charmosa e linda, e todos queriam agradá-la


Certa vez, um bom rapaz enamorou-se dela

Mas ele não lhe deu suas flores preferidas

Outro excelente rapaz caiu na sua teia

Mas ele não foi romântico o suficiente

Um terceiro viajou quilômetros para vê-la

Mas ela lhe disse que não era o momento


Um dia, porém, ela achou alguém

Que não se importava em fazer tudo que ela queria

E assim ela viveu para sempre

Com alguém que ela não queria

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

A abelha e a Citrus

Comecemos do jeito clichê.


Era uma vez uma abelha aficcionada por Schweppes Citrus (espero que a Coca-Cola não me processe). O problema é que poucas pessoas e abelhas bebem esse refrigerante, o que a tornava ainda mais desejada por essa abelha. Ela ficava zanzando em volta das poucas latinhas verdes que encontrava e sonhava um dia em conseguir experimentá-la. No entanto, ela acreditava que, das poucas vezes que tentou realmente parar de zanzar e ir direto ao ponto, teria morrido esmagada por algum humano (lembremos que a abelha era seguidora de Gandhi e, portanto, acreditava na reencarnação e na não-violência: ela jamais enfiaria seu ferrão na mão de seu agressor – o que seria coerente apenas com a idéia de guerra justa, não com a idéia de não-violência).


Por isso, a abelha continuava zanzando em volta do refrigerante apenas. O mais leve sinal de ameaça levava-a se afastar, mas logo se aproximava novamente de seu objeto de adoração. Seu maior desejo era que, em um dia qualquer, a latinha fosse derrubada, o líquido se espalhasse e ela pudesse provar a Citrus sem o menor esforço e risco. Sua fixação era tanta que nem os outros refrigerantes já experimentados e aprovados por inúmeras abelhas mundo afora lhe chamavam a atenção. As gostosas guaranás, colas e demais eram comumente vistas cheias de abelhas promíscuas. A Schweppes não. Poucos tinham o gosto de prová-las e seu cheiro era dos mais agradáveis.


Obviamente, as flores não lhe chamavam qualquer atenção. Essas seriam as mais fáceis: sem qualquer ameaça, ela poderia chegar nelas e usufruir facilmente de seu néctar, como milhares de outras abelhas faziam desde tempos imemoriais. Poderia pular de uma flor para outra e experimentar os diferentes tipos de néctar. Mas não, sua meta era a Schweppes Citrus. Entretanto, com medo de arriscar e levar um belo de um tapa, ficava apenas zanzando em volta, esquecendo outros refrigerantes e flores. Tinha conhecido duas outras abelhas que também gostavam de Schweppes, mas essas estavam hoje mortas pela raiva de chinelos humanos.


Certa vez, viu um homem caminhando na rua, cambaleando entre duas mulheres. Abraçado a elas, ele carregava uma garrafa com um cheiro forte, cujo conteúdo, quando ele não estava bebendo, era derramado ao longo do caminho. Ele ria alto, assim como as mulheres que o acompanhavam. A abelha, que estava em um momento depressivo pensando na sua inalcançável Citrus, sentiu o cheiro forte do líquido e, embora tenha o achado inicialmente um pouco asqueroso, sentiu enorme curiosidade de prová-lo.


A abelha tinha conhecido a cachaça. Com apenas uma gota daquele líquido amargo (que para a abelha era como um barril), a abelha se sentiu desinibida e pouco seletiva. Foi em busca do néctar de camélias, bromélias, margaridas, orquídeas e tulipas, mas também de milhares de flores horrorosas com néctar de qualidade muito duvidosa. Pulava de uma flor a outra de forma fugaz e, às vezes, dividia promiscuamente uma mesma flor com mais uma ou duas abelhas. Em um momento de pouca consciência, tentou se aproximar de uma planta carnívora que pensava ser uma flor. Quase foi comida, mas percebendo o erro, se afastou a tempo.


Algumas horas depois o efeito de entusiasmo se desfez e voltou a pensar na idealizada Schweppes Citrus. Chorou amargamente por sua paixão, enquanto se arrastava pelo chão sem conseguir voar. De repente, um Nike Shox 44 esmagou-a sem piedade. Provavelmente sem querer. E a abelha não reencarnou. FIM

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

O peso de uma vida sem Graça

Paula era a filha ideal. Fizera tudo que seus pais esperavam: estudava Direito na melhor faculdade da região, frequentava a igreja semanalmente e tinha uma vida casta até então. A vida noturna parecia-lhe inóspita – sentia-se como uma arara na Antártida. Tinha, portanto, uma vida quase asceta, coisa que ela só pretendia interromper quando encontrasse alguém que valesse a pena. De preferência alguém que resultasse em casamento, único momento em que a castidade lhe poderia ser completamente desnuda. Pelo menos, era o que sonhava - exatamente como os seus pais também sonhavam.

Mas Paula era uma menina charmosa: com pouco mais de 20 anos, exalava feromônios que deixavam ensandecidos rapazes da idade dela. Desde sua adolescência, vários garotos tentavam se aproximar dela. Alguns, mais espertos, já viam de antemão toda a burocracia familiar que poderia resultar uma relação com ela, além é claro da própria dificuldade homérica de estabelecer alguma relação mais do que amigável com ela. Ela também tinha um irmão, que poderia ser empecilho para possíveis pretendentes que não combinassem com a cartilha familiar, uma vez que, até o momento que se mudou para estudar, também tinha os mesmos valores de sua irmã e seus pais. A cartilha familiar previa um bom moço, estudioso, branco, ativo na igreja e inteligente. Seu irmão, fora de casa, tentou por um ano algumas namoradas convenientemente castas, até se perder em uma taberna fétida com uma prostituta de baixa categoria. Desde então, esfregava-se quinzenalmente com alguma profissional do sexo e o remorso inicial, aos poucos, foi se esvaecendo.

Não obstante, Paula continuava em casa, tentando seguir a cartilha. Possíveis pretendentes, no entanto, apareceram. Ela judiciosamente os avaliava, mas antes, se aproximava, dava inocentes abraços e beijos, tudo na mais completa amizade. Pelo menos em sua opinião, que não era compartilhada com os hormônios de seus pretendentes, cujas intenções, com disfarce inicial de amigo, eram essencialmente instintivos e carnais. Quando estes estavam sedentos por amor e sexo, ela chegava a pensar neles de modo mais sério, mas só de relance. O medo de decepcionar os pais, o medo de estar saindo da cartilha, o medo de algum deus oculto a condenando, o medo de se arriscar e se envolver, o medo de “perder o amigo”... tudo isso se juntava de tal modo que, para ela, era mais fácil continuar então a fingir que nada estava acontecendo. Seus beijos na bochecha e abraços continuavam, a sua perna encontrava a do rapaz debaixo da mesa inocentemente, seus joguinhos sentimentais e disfarçadamente sexuais (até para ela) continuavam.

Até que acontecia. A pobre criatura se declarava. Aconteceu repetidas vezes. Dezenas de rapazes deram com a cara no vidro. Após o não e ouvindo o discurso da amizade entre eles, os rapazes saíam desolados. Alguns, mais românticos e castos, continuavam sua busca por outras meninas do gênero – quando achavam, acabariam se casando com elas e tendo filhos que propagariam o falso evangelho legalista moral. Mas outros acabariam como o irmão de Paula, perdido na sarjeta depois de penetrar duas meretrizes.

A ideologia do conto de fadas era a melhor para Paula, todavia. Aos 18 anos, ao sair do banho, olhou-se de relance no espelho e percebeu quão harmonioso era o seu corpo. Seus seios não eram exageradamente grandes, porém tampouco pequenos. No conjunto de seu corpo, tinham exatamente a forma certa, ondulados e eretos. Suas pernas também eram bonitas e seu corpo era curvilíneo: nada excessivo ou exagerado, mas um corpo bonito aliado a um belo rosto, cabelos lisos e olhos claros. Fingiu que isso não era importante na sua vida, que eram os valores errados, que deveria se concentrar nos valores corretos. Mas a cada dia, buscava cuidar mais da alimentação a fim de manter sua beleza juvenil. Apesar disso, não queria de forma alguma reconhecer que tinha virado mulher e que tinha desejos outros além de amizades e bonecas.

Paula continuou com as “amizades inocentes”. Continuou andando de mãos dadas com “amigos” e dando-lhes abraços apertados. Por vezes ela se sentia atraído por alguns deles, mas pensava em um defeito deles e logo tentava se livrar desses desejos. As vítimas a abraçavam com vontade, enlaçando-a pela cintura e sorrateiramente acariciando-lhe as costas no intervalo entre a calça e a blusa – certamente com vontade de ir muito além. Logo depois, ela dizia como era importante a amizade entre eles.

Afinal, ser criança era muito mais conveniente para Paula. Crianças estudam e podem tentar satisfazer os desejos dos pais. A vida de Paula era dedicada a satisfazer os pais. As opiniões dos pais eram o que mais contavam na vida dela e arriscar-se com garotos talvez fosse a forma mais terrível de obter a desaprovação familiar.

Mas um dia, descobriu de alguma maneira que seu pai tivera uma amante no casamento. Paula já tinha seus 23 anos. Seu infantil sorriso se desvaneceu repentinamente. Satisfazer os pais parou de fazer sentido. A religião de seus pais não fazia sentido. Nada fazia sentido. Pensou diversas vezes em suicídio. E então descobriu as peripécias sexuais de seu irmão fora de casa através de uma amiga. Esta já tinha sido mais comportada, até se deixar levar pelo papo sedutor do irmão de Paula, que entusiasmada em um momento ébrio, descreveu para Paula detalhes sórdidos de seu momento de êxtase em uma festa. Paula finalmente concordara em ir a uma festa da faculdade no momento de crise.

Desolada e sem poder contar com ninguém, sentou-se na calçada às 4 da manhã e, amargamente, chorou. Viu colegas suas entrando em carros com pessoas que sequer conheciam, homens e mulheres. Mas viu também uma colega sua, ternamente abraçada com seu namorado, rindo de uma piada carinhosa. Ficou confusa e pediu a Deus que, se ele existisse, que a tirasse de lá. Um rapaz de duas turmas acima da dela, Roberto, também saía da festa, ligeiramente alcoolizado, mas com o rosto abatido. Tinha acabado há pouco seu relacionamento de 5 anos com a namorada, com quem, acidentalmente, tivera um filho natimorto. Merecido pensou, fora infiel duas vezes durante o período. Sentou-se ao lado de Paula por vê-la numa situação tão ruim ou pior que a dele.

E Paula resolveu se abrir. E falou tudo, detalhe por detalhe. Roberto ouviu-a pacientemente. Lembrou-se que tivera também um passado religioso e que, durante a adolescência, também era bastante regrado. Lembrou-se de como abandonara tudo, mas que tinha certa saudade daquele tempo, em que encontrava amigos na igreja nos almoços comunitários. E perceberam que tinham muita coisa em comum – eram da mesma comunidade, de onde Roberto desaparecera.

Em meio a conversa, ambos lembraram que o pastor sempre lhes falava de que nada precisavam fazer para merecer o amor de Deus. Paula pensou na sua vida em busca de satisfazer os pais para merecer o amor deles, enquanto que, pela primeira vez, Roberto pensava sobre essas palavras com uma visão mais madura.

Lentamente, Paula reclinou sua cabeça no ombro de Roberto. Fechou os olhos calmamente e se aproximou mais de Roberto, sem inocências. Roberto olhou para ela. O rosto de Paula transparecia a tranquilidade de quem deixara de carregar um peso. Ele a enlaçou pela cintura, enquanto olhava para a única estrela que aparecia entre as nuvens.