terça-feira, 1 de maio de 2012

Espectador


A televisão estava sempre ligada na casa do velho militar, sempre sentado ao sofá. Desde que se aposentara, passava as tardes assistindo filmes, após o metódico exercício pela manhã que iniciava por volta das nove horas no verão. “Depois esquenta muito”, dizia o reservista. Mas após o almoço, assistia a seus filmes antigos em seu canal favorito de TV a cabo. No filme de hoje, só para variar, personagens em preto e branco se beijavam em um novamente inédito final feliz. O sisudo senhor chorava copiosamente, ainda que tentasse disfarçar o indisfarçável, tamanho era o volume de água. A mulher do velho riu, enquanto o velho não sabia se ficava irritado, envergonhado ou se continuava a sentir aquilo que a vida não o deixou sentir.

No apartamento ao lado, o vizinho via o mesmo filme. Na verdade, ele estava apenas passando os canais, terminado o jogo de futebol. O guri gremista do outro prédio gritara “gol” extasiado, o que o lembrara de que o dia de amanhã não traria mais um problema, uma vez que seus colegas de trabalho na universidade, aquele bando de professores colorados, não encheriam seu saco com as piadinhas costumeiras dos dias pós-derrota. Estava satisfeito, embora não tanto por ter vencido, mas sim porque evitaria a fadiga. Ao trocar de canal, deixou no canal do filme, que estava quase em seu final feliz tradicional. “Esses filmes de antigamente eram tão ingênuos. Idiotas, talvez. Será que as pessoas eram mais ingênuas antigamente?”, pensou ele. O professor foi para o quarto e voltou a pensar na sua viagem de um ano que faria em breve para realizar um pós-doutorado no exterior. Era preciso ainda fazer muita coisa e a viagem era logo daqui a dois dias.

Ele abriu uma caixa e procurou o que de importante havia dentro. Era uma caixa de guardar coisas. Havia muitos fios emaranhados, alguns recortes de jornais antigos e cartões da época em que correspondências ainda eram enviadas com mais frequência. Pegou algumas coisas que interessava. Suas gaitas de boca estavam em um canto do quarto – com umas três delas, poderia se virar por algum tempo, mas os violões teriam que ficar por aqui lamentavelmente. “Bom para os vizinhos, que não me ouvirão cantando”, pensou em tom irônico, embora seus vizinhos elogiassem sua performance ao vivo no seu quarto.  Olhou de novo para a caixa, perguntando-se por que a tinha. “Talvez pelo mesmo motivo que pessoas veem filmes antigos que sempre acabam do mesmo jeito”, pensou.

“We were watching TV, we were watching TV”, dizia a música que saía das caixas de som de seu computador. Na TV passavam algumas propagandas sem sentido. Pensou na caixa de guardar coisas e no que deixava para trás na cidade onde tinha nascido e crescido. “Não vai fazer tanta falta”, pensou. “In Tiananmen Square, lost my baby there”, continuou a música, que falava sobre a morte de uma estudante que morrera no Massacre da Praça da Paz Celestial, perpetrado pela ditadura chinesa. Uma morte gravada por câmeras e mostrada para o mundo inteiro pela TV. “Malditos ditadores”, pensou o professor. Em seguida, conseguiu ver da janela o velho militar enxugando as lágrimas com mais um filme antigo que começara faz pouco. Com certo desprezo, ele pensou: “Mas esse velho fazia parte da ditadura, como pode... talvez seja o único espaço em que eles podem chorar as mortes de suas vítimas”.

Sentou-se na poltrona, cansado sem saber o motivo. Não fugiu mais do que sentia. Sabia no fundo que passar um ano fora seria algo difícil, deixando toda sua vida para trás, com suas alegrias e tristezas. Tentou deixar de estar distante de si mesmo. Difícil fazer isso, mais forte do que ele. Sentiu-se um espectador da própria vida. Na verdade, menos do que um espectador, porque espectadores torcem, gritam, choram ou sorriem, dependendo dos sucessos ou desventuras de personagens ou jogadores.  Era o que faziam o guri fanático por futebol e o velho militar viciado em filmes velhos. Ele era um espectador imparcial do filme de sua própria vida. Mas diante da perda do que era mais importante, já não era possível carregar o peso de não sentir.

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