sábado, 30 de junho de 2012

Saints and sinners


***Post escrito em meu Facebook Notes em 25 de abril de 2010

I am not a great movie fan, as some may already know. The problem is simply that I am too lazy to go to the cinema by myself: it seems easier to find a book to read seated on the couch. However, after seeing only few American and European movies we become able to understand that there is a basic difference between these two schools of cinema – at least on average. American movies tend to clearly divide the characters in two categories: it can be angels against demons, heroes against monsters, policemen against thieves, good against the evil, the Allies against the Axis. On the other hand, European movies are more ambivalent and characters often have qualities and defects. In some way, they are more realistic.

This seems to be a criticism to the American way of making movies. Indeed it is somehow. But I do recognize that opposite forces are parts of our lives as well. Our dominant cultural and religious influence seems also to emphasize this point. In our Western culture (which I am part of since I am a Brazilian, despite my Korean heritage), there are gods and devils, heavens and hells. Christianity seems sometimes to emphasize this dualistic view. But a thorough investigation may show us that dualistic views are more Greek rather than Christian. It does not mean it is entirely wrong, but looking to the world only through these dualistic lenses may not be a good choice. It is easy to fall into the temptation to see ourselves only at the good side – and then it becomes easy to end up criticizing those who are supposedly beyond the dividing line.

Recently I was surprised to read a book written by an American (and a Californian, where most movies are made!) in which people were portrayed as belonging to both sides, the good and the evil – much more like European movies or Dostoyevskyan characters. When describing the site in which the story takes place, John Steinbeck asserts the following on Cannery Row (1936): 

“Its inhabitants are, as the man once said, ‘whores, pimps, gamblers, and sons of bitches’, by which he meant Everybody. Had the man looked through another peephole he might have said, ‘Saints and angels and martyrs and holy men’, and he would have meant the same thing”.


As a Christian, I have received some kind of Puritan and moralistic influence since I was a child. The “world” seemed to be a strange and dangerous place. Only few years ago I realized how far I was from the truly Christian idea that we are all sinners. We can even grasp it intellectually, but to apprehend it fully is a step ahead. As most our movies do, it is more comfortable to put us on the “right” side and judge everyone else. But days go by, and it becomes clear how much darkness live in our hearts. That’s why Dostoyevsky’s Raskolnykov from Crime and Punishment will never be outdated. That’s why Steinbeck still talks to us. One of the most important discoveries in my spiritual life was the very fact that I am not less sinner than prostitutes or thieves. Only recognizing it we can depend entirely on God's Grace. We are whores and saints, gamblers and holy men. Luther always said that Christians are saints and sinners. 

May God make us recognize that being a Christian does not mean we are not sinners. We Christians, Muslims, Jews, Atheists, human beings… there is no difference between us in terms of good and evil: we are all sinners. And then maybe we start to worry more about loving rather than judging our neighbor. 

terça-feira, 1 de maio de 2012

Espectador


A televisão estava sempre ligada na casa do velho militar, sempre sentado ao sofá. Desde que se aposentara, passava as tardes assistindo filmes, após o metódico exercício pela manhã que iniciava por volta das nove horas no verão. “Depois esquenta muito”, dizia o reservista. Mas após o almoço, assistia a seus filmes antigos em seu canal favorito de TV a cabo. No filme de hoje, só para variar, personagens em preto e branco se beijavam em um novamente inédito final feliz. O sisudo senhor chorava copiosamente, ainda que tentasse disfarçar o indisfarçável, tamanho era o volume de água. A mulher do velho riu, enquanto o velho não sabia se ficava irritado, envergonhado ou se continuava a sentir aquilo que a vida não o deixou sentir.

No apartamento ao lado, o vizinho via o mesmo filme. Na verdade, ele estava apenas passando os canais, terminado o jogo de futebol. O guri gremista do outro prédio gritara “gol” extasiado, o que o lembrara de que o dia de amanhã não traria mais um problema, uma vez que seus colegas de trabalho na universidade, aquele bando de professores colorados, não encheriam seu saco com as piadinhas costumeiras dos dias pós-derrota. Estava satisfeito, embora não tanto por ter vencido, mas sim porque evitaria a fadiga. Ao trocar de canal, deixou no canal do filme, que estava quase em seu final feliz tradicional. “Esses filmes de antigamente eram tão ingênuos. Idiotas, talvez. Será que as pessoas eram mais ingênuas antigamente?”, pensou ele. O professor foi para o quarto e voltou a pensar na sua viagem de um ano que faria em breve para realizar um pós-doutorado no exterior. Era preciso ainda fazer muita coisa e a viagem era logo daqui a dois dias.

Ele abriu uma caixa e procurou o que de importante havia dentro. Era uma caixa de guardar coisas. Havia muitos fios emaranhados, alguns recortes de jornais antigos e cartões da época em que correspondências ainda eram enviadas com mais frequência. Pegou algumas coisas que interessava. Suas gaitas de boca estavam em um canto do quarto – com umas três delas, poderia se virar por algum tempo, mas os violões teriam que ficar por aqui lamentavelmente. “Bom para os vizinhos, que não me ouvirão cantando”, pensou em tom irônico, embora seus vizinhos elogiassem sua performance ao vivo no seu quarto.  Olhou de novo para a caixa, perguntando-se por que a tinha. “Talvez pelo mesmo motivo que pessoas veem filmes antigos que sempre acabam do mesmo jeito”, pensou.

“We were watching TV, we were watching TV”, dizia a música que saía das caixas de som de seu computador. Na TV passavam algumas propagandas sem sentido. Pensou na caixa de guardar coisas e no que deixava para trás na cidade onde tinha nascido e crescido. “Não vai fazer tanta falta”, pensou. “In Tiananmen Square, lost my baby there”, continuou a música, que falava sobre a morte de uma estudante que morrera no Massacre da Praça da Paz Celestial, perpetrado pela ditadura chinesa. Uma morte gravada por câmeras e mostrada para o mundo inteiro pela TV. “Malditos ditadores”, pensou o professor. Em seguida, conseguiu ver da janela o velho militar enxugando as lágrimas com mais um filme antigo que começara faz pouco. Com certo desprezo, ele pensou: “Mas esse velho fazia parte da ditadura, como pode... talvez seja o único espaço em que eles podem chorar as mortes de suas vítimas”.

Sentou-se na poltrona, cansado sem saber o motivo. Não fugiu mais do que sentia. Sabia no fundo que passar um ano fora seria algo difícil, deixando toda sua vida para trás, com suas alegrias e tristezas. Tentou deixar de estar distante de si mesmo. Difícil fazer isso, mais forte do que ele. Sentiu-se um espectador da própria vida. Na verdade, menos do que um espectador, porque espectadores torcem, gritam, choram ou sorriem, dependendo dos sucessos ou desventuras de personagens ou jogadores.  Era o que faziam o guri fanático por futebol e o velho militar viciado em filmes velhos. Ele era um espectador imparcial do filme de sua própria vida. Mas diante da perda do que era mais importante, já não era possível carregar o peso de não sentir.

domingo, 18 de março de 2012

Guerras e muros



Um dos discos mais famosos da história do rock, The Wall, da banda inglesa Pink Floyd, não é cultuado até hoje apenas por sua qualidade musical. Roger Waters, baixista da banda, trabalhou uma série de questões psicológicas e políticas nas letras do álbum temático. No início dos shows da atual turnê de Waters, logo aparecem as referências a seu pai. Uma foto, o nome completo, a data de nascimento e morte. O pai de Waters faleceu na II Guerra em 1944, deixando Roger órfão aos cinco meses de idade.

É estranho talvez pensar em como a morte prematura de um pai, que Waters sequer conheceu, tenha o afetado a tal ponto que se tornou assunto recorrente no álbum. Ficamos sensibilizados com os horrores de guerras quando vemos fotos de crianças na África sem pernas após terem pisado em minas terrestres; em filmes que retratam guerras, como por exemplo, “O Resgate do Soldado Ryan”; no videoclip da canção “Brothers in Arms” do Dire Straits; nos horrores praticados por guerrilhas com crianças. A morte é um fantasma em nossas vidas, mas ainda mais dolorosa para aqueles cujos entes queridos foram vitimados prematuramente, fugindo do curso natural da existência. Se você perdesse seus pais ou irmãos em uma guerra, seria compreensível você criar horror à guerra e suas nefastas consequências. Mas será que para um bebê de cinco meses isso é tão relevante assim? E para aqueles cujos parentes passaram por guerras e sobreviveram? Será a guerra ainda assim traumática de forma indireta?

Não posso compreender exatamente o que se passou na cabeça de Waters. The Wall dá uma boa pista, mas há uma canção que não foi lançada no álbum e que mostra um pouco o quanto a morte de seu pai impactou na sua vida. No filme “the Wall”, lançado alguns anos depois do álbum, temos a canção “When the Tigers Broke Free”. Nesta música, Waters descreve como ele acidentalmente encontrou uma carta do Rei da Inglaterra comunicando a morte do seu pai – escondida em uma gaveta de fotos antigas. Na última estrofe, de forma dramática, Waters descreve da seguinte forma a batalha que vitimou seu pai:

It was dark all around.
There was frost in the ground
When the tigers broke free.
And no one survived 
From the Royal Fusiliers Company C.
They were all left behind,
Most of them dead,
The rest of them dying.
And that's how the High Command took my daddy -  from me. 

“Foi assim que o Alto Comando tirou meu pai de mim”. Evito utilizar o pronome “lhe” na minha tradução livre para enfatizar a dor que lhe causou a morte de seu pai, como ele próprio enfatiza no fim da canção, seguido de um silêncio repentino ensurdecedor. Provavelmente essa dor não foi lhe passada diretamente, mas o modo como tais acontecimentos afetaram sua mãe e demais parentes certamente não lhe passou despercebido. Nossas ligações emocionais com nossas famílias não permitem que escapemos da dor que ali convive à espreita, como um fantasma morto que nos assombra. Ela aparece, por exemplo, quando vemos como nossos pais lidam com situações limítrofes que nos afetam. (In)felizmente, temos uma forte capacidade empática de perceber a dor das pessoas próximas. Não é para menos que histórias de nossos avós ou pais nos emocionam, mesmo quando ocorreram em um passado distante, antes mesmo de nascermos. 

Talvez por isso a guerra seja tão horrível. Os custos da guerra não se resumem ao impacto sofrido por quem viu a guerra e recebeu a notícia da morte de parentes e amigos. Essas dores perduram nas gerações seguintes, mesmo quando não se tocam nesses assuntos, justamente devido à dor que causam. Os traumas de nossos pais fazem com que eles próprios, para se protegerem, se distanciem de si mesmos. Esse processo de distanciamento de si próprios impede que eles dividam suas dores com os outros, mesmo com seus filhos. E, assim, nos distanciamos de nossos pais e até de nós mesmos, porque aprendemos em casa que não é bom se aproximar de si mesmo e lidar com suas próprias tristezas e alegrias.

Waters perdeu o pai na guerra. Mas quanto sua mãe também não morreu com isso? O quanto ele próprio não perdeu a si mesmo ao ver seus entes mais queridos se distanciarem de si mesmos para se protegerem? Não é à toa que o disco se chama “The Wall”. Não é à toa que construímos muros em volta de nós mesmos. Meu pai sobreviveu ao totalitarismo comunista e à Guerra da Coreia, minha mãe sobreviveu às péssimas condições de vida em um país destruído por uma sangrenta guerra civil. O quanto deles eu perdi com a guerra? E o quanto eu perdi de mim mesmo? Quão alto é o muro que criamos entre nós e o mundo?

“Mother, did it need to be so high?” (“Mother”, Pink Floyd - The Wall)