sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Não poderia viver no Uruguai

Não poderia viver no Uruguai. Em qualquer lugar de Montevideo é possível achar algo feito com doce de leite. E não é qualquer doce de leite, é o dulce de leche uruguayo. Para um viciado irrecuperável como eu, seria a perdição total. Acho que até conseguiria engordar (coisa que não acontece desde que passei a morar sozinho). O balde de 3 kg de doce de leite Conaprole tornou-se meu sonho de consumo, só não realizado pelo medo da alfândega no Brasil. Embora fosse ser verdade, dificilmente convenceria alguém que um balde de doce de leite é para consumo pessoal. Contentei-me com dois vidrinhos de 1kg, sendo um destinado ao meu orientador, também um exímio apreciador do produto. Em matéria de laticínios, os uruguaios são mestres, com meu perdão dos meus caros amigos mineiros, que também são competentes. De qualquer maneira, os mineiros deveriam ir para Montevideo a fim de aprender que não inventaram o doce de leite.

Mas há outras especificidades em Montevideo, cidade que conheci na semana retrasada. No país de apenas 3 milhões de habitantes, metade mora na capital. Além disso, jogam truco com baralho espanhol e tomam mate assim como os gaúchos. Mais do que isso, tomam mate todos os dias em qualquer lugar, carregam pelas ruas, shoppings, praças, escolas e escritórios em qualquer hora e dia da semana. Desenvolveram também uma técnica de prender a térmica no braço e com um leve movimento, enchem sua cuia (que eles chamam de mate, enquanto a erva é simplesmente chamada de yerba). O mais curioso é que toda erva-mate do Uruguai é importada. Qual não foi minha surpresa ao ver que a principal marca de erva deles vem de... Encantado, Rio Grande do Sul. Mesmo assim, os gaúchos deveriam ir para Montevideo a fim de aprender que não são os maiores viciados em mate no mundo.

Ao chegar na cidade, entrei em contato com uma amiga uruguaia metodista, com quem trabalhei na Assembléia do Conselho Mundial de Igrejas em Porto Alegre. Sua família, composta pelos pais e as duas filhas (e também o namorado de uma delas), me recebeu de braços abertos. Fui convidado para um jantar, assisti o trabalho da Igreja Metodista com os moradores de rua (algo parecido com o que fazemos em São Paulo) e fui convidado para falar sobre minha realidade no grupo de jovens deles. Fui tão bem tratado que até sentirei falta desses amigos, para quem reclama que sou pouco nostálgico. Essa gentil família é muito ligada à igreja: o pai, pastor metodista; a mãe, pastora valdense. Sim, os valdenses são os primeiros protestantes do mundo, muito antes de Lutero, mas que ficaram confinados em alguma região da Itália, após o início do movimento liderado por Pedro Valdo em 1180. Também é bom que os luteranos aprendam que não são os primeiros.

A mistura de cultura hispânica com um pouco de italiana deixou suas marcas nas belas faces das uruguaias, que têm uma beleza particular e atraente. A memória dos tempos áureos está nos prédios antigos e bonitos da capital uruguaia, que infelizmente é visivelmente decadente. O povo é extremamente receptivo, a maioria é muito cordial e ajuda turistas brasileiros meio perdidos. Não digo isso apenas pela família que me recebeu, mas também por outros que sempre estavam dispostos a ajudar ou a ter uma boa conversa. Embora etnicamente e culturalmente sejam muito parecidos com os porteños, os uruguaios são muito cordiais. Talvez alguns de Buenos Aires (e mesmo alguns gaúchos) devessem ir para Montevideo para aprender que também podem não ser arrogantes e que o Uruguai não é uma colônia deles.

Não posso, entretanto, cometer injustiças: conheci um porteño muito gente boa na conferência que participei: inclusive muito crítico dos excessos de seus conterrâneos. É evidente que o argentino arrogante é apenas um estereótipo. Havia muitos argentinos legais no evento, mas talvez porque o assunto da conferência é para pessoas mais legais (não me livrei por completo da arrogância gaúcha). A conferência tratava de desenvolvimento humano, pobreza e democracia: assuntos que não recebem o destaque devido pelos economistas e suas pobres e chatas teorias quando se trata de bem-estar. Talvez mais economistas devessem ter ido à conferência aprender que crescimento do PIB a qualquer custo não é tudo.

Contudo, não precisamos fumar tanta maconha quanto os montevideanos. A maioria dos jovens não nega uma marijuana. Apesar desse pequenino revés, acho que aprendi bastante em apenas cinco dias de Uruguai.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Choque cultural

Poucas vezes antes tinha sentido fortemente um choque cultural. Talvez por ter nascido e crescido em meio a um choque cultural: sou de uma família coreana no Rio Grande do Sul participando de uma igreja luterana com forte influência germânica. Assim, sempre fui mais resistente aos choques culturais. Eu mesmo era e sou um choque cultural ambulante.

Mesmo em momentos como a Assembléia do Conselho Mundial de Igrejas, em que trabalhei com aproximadamente 140 jovens de TODAS as partes do mundo, não senti muito forte o choque. Estávamos todos trabalhando, tínhamos nossas diferenças, mas também não foram tantas relações de fato aprofundadas. E o óbvio também acontecia: pessoas com mentalidades mais parecidas se aproximavam mais, afinal a oferta de possíveis amigos era farta. Ano passado, quando fui à Suíça, as diferenças culturais inclusive me agradaram. Curiosamente, meu amigo suíço Daniel, que me hospedou, tinha uma mentalidade em muitos aspectos bastante parecida com a minha. O mesmo posso dizer de Tobias, amigo de Daniel, e de Alena, esposa de Daniel. Isso certamente explica também porque no final de uma semana parecíamos amigos de longa data. Senti-me mais em casa em Berna do que em São Paulo.

Certamente, meu primeiro grande choque cultural, mas não apenas cultural, foi minha mudança pra São Paulo. Mas muito de meu mal-estar em São Paulo estava associado às outras mudanças advindas: sair de casa, afastar-se da minha namorada da época, estudar como um cão no mestrado, círculo de amigos bastante restrito e, não menos importante, a disparidade estética média entre as mulheres paulistanas e as porto-alegrenses. Claro que há mulheres bonitas em São Paulo, mas não preciso dizer quem leva grande vantagem no placar quando falamos de média. E na verdade, aqui em São Paulo, continuo perambulando como um choque cultural. Dentro do Brasil, meu fenótipo é muito mais associado ao paulistano do que ao gaúcho. O sotaque (que é fraco mas às vezes aparece), a camisa do Grêmio e o chimarrão são motivos de espanto muitas vezes.

Apesar da minha resistência, da última vez que tive contato maior com estrangeiros, senti mais forte o choque. Recentemente, duas intercambistas da Igreja (Luterana) da Suécia estavam trabalhando em Santo André, cidade aqui ao lado. Elas eram muito divertidas, mas os escandinavos são notoriamente diferentes de nós. Não que os suíços ou alemães não sejam. Mas talvez por elas estarem em nosso território, as diferenças fiquem mais claras. Jenny e Elin, embora muito legais, me mostraram um pouco das absurdas diferenças de mentalidade de um povo etnicamente e homogêneo que vive em clima e instituições completamente diferentes das nossas. Era difícil entender ou digerir algumas coisas que elas diziam. Afinal, como entender que uma sociedade veja com naturalidade festas que ocorrem em saunas, com pessoas peladas e cervejas geladas? Talvez os brasileiros sejam apenas falsos conservadores hipócritas, mas a sensação de pertencer a um outro mundo foi grande, algo que eu sentira poucas vezes antes, embora tenhamos nos divertido bastante.

Eu e as suecas passeamos por São Paulo e fomos a um jogo do Corinthians com alguns outros amigos. Momentos em que conversamos bastante. Não eram como os 140 jovens na Assembléia, entre os quais eu podia procurar os que mais tinham cabeças mais parecidas com a minha. Não era como o Daniel na Suíça, que discutia teologia, política e economia comigo, além de ter visões surpreendentemente parecidas com as minhas em vários assuntos. Eu tive ótimas conversas com as suecas e foram dias realmente edificantes: acho que me dei bem muito bem com elas além de tudo. Mas eu não posso negar que senti um pouco do choque. Faz parte.