Eu gostava da Pipoca. Talvez ela não fosse muito expressiva como os animais de estimação mais comuns, tais como os cachorros e os gatos. Ficava geralmente parada no canto da sala, fungando incessantemente, como fazem todos os roedores, ou mastigando alguma folha de couve.
Lembro de duas ocasiões que a deixavam mais agitada. Uma delas era o momento de ser presa na sua gaiola à noite. Barreiras eram feitas nas entradas dos cômodos: era preciso impedi-la de se refugiar debaixo dos móveis ou atrás do freezer, de onde só saía enxotada por uma vassoura. A Joana fazia essa tarefa de um dos lados do freezer, enquanto eu me colocava perto do outro lado, impedindo a passagem da coelha para outro cômodo. Vendo-me à entrada da porta, Pipoca reconhecia a derrota e entrava na gaiola ainda contrafeita, o que era perceptível por seus ruídos consternados. Pior era se esquecíamos de soltá-la cedo pela manhã, quando se tornava ainda mais nítida a irritação da coelhinha trancafiada.
A segunda ocasião era quando uma bergamota aromática era descascada. Sempre acreditei, por influência de desenhos animados na minha infância, que coelhos eram loucos por cenoura. Pipoca até gostava de cenoura, mas evidentemente preferia couves. Mas mais do que couves, quando descascávamos uma bergamota perto dela, Pipoca se levantava em duas patas fungando ansiosamente. Pior foi um dia em que deixamos um cesto de bergamotas trazidas do interior no chão da cozinha. Ao nos ver distraídos, Pipoca sorrateiramente roubou uma bergamota do cesto, segurando-os com seus proeminentes dentes frontais. Em seguida, saltitou rapidamente em direção à sala, indo para seu canto comer os gomos avidamente.
Eu me afeiçoaria à Pipoca de qualquer maneira - até porque a coelhinha já fazia parte da vida da Joana quando começamos o nosso relacionamento. Em muitas ocasiões, Pipoca foi a única testemunha ocular e silenciosa de momentos importantes do início do nosso namoro. Como filho de imigrantes coreanos, talvez meu apreço pela Pipoca fosse ainda maior porque coelhos têm um papel especial na cultura coreana. Diz-se que a península coreana se parece com um coelho de perfil. Parece mesmo: é fácil identificar a orelha e o focinho, bem como as patas sobressalentes perto de onde hoje é a fronteira entre Coreia do Sul e Coreia do Norte. Além disso, a mais famosa canção infantil na Coreia, que me lembro até hoje, versa sobre um coelhinho:
산토끼 토끼야 (Coelhinho da montanha)
어디를 가느냐 (Para onde você vai?)
깡충깡충 뛰면서 (Saltitando enquanto corre)
어디를 가느냐 (Para onde vai você?)
Mas coelhinhos são presas: a Coreia foi por anos dominada por seus vizinhos à leste e à oeste. No início do século XX, o país foi vítima da expansão territorial do Império Japonês. A dominação militar significou a tentativa de acabar com a cultura coreana, com a adoção da língua japonesa nas escolas. Centenas de mulheres coreanas serviram como escravas sexuais para o Exército nipônico, entre outras atrocidades até hoje não reconhecidas pelo Estado japonês.
Certo dia, quando eu estava no trabalho, a Joana me ligou chorando do interior, para onde tinha levado a coelha durante um feriado mais prolongado. Pipoca havia morrido. Não sabemos se foi infarto fulminante ou se ela comeu alguma frutinha no jardim. Talvez as cachorras de alguma forma tenham provocado sua morte acidentalmente: era normal que corressem atrás da coelha. Pipoca, como boa presa, estava sempre fugindo das brincalhonas cadelas no jardim. Enfim, não se sabe a causa mortis: só se sabe que seu pequeno coração havia parado repentinamente. Eu não sabia o que dizer para a Joana, que chorava copiosamente ao telefone. Impotente dentro de um prédio no centro de Porto Alegre, a quilômetros de distância, não era possível fazer muita coisa.
Desde que tinha chegado no interior alguns dias antes, Pipoca corria feliz no espaçoso jardim cheio de frutas e verduras, mas sua alegria durou pouco. Assim também foi com a Coreia, libertada do jugo externo com o fim da Segunda Guerra. Pouco tempo após sua libertação, o país passou a ser vítima dos jogos de poder internos e da Guerra Fria: o território coreano em forma de coelho foi dividido em duas partes, uma comunista, outra capitalista. Milhares morreram na guerra civil, famílias foram divididas, pontes cortadas. Muita gente perdeu sua fé em qualquer coisa que acreditasse.
O território não é mais um coelhinho só. A divisão continua. Os coreanos carregam a dor de suas famílias divididas, muitas das quais não se comunicam há mais de sessenta anos. É difícil auscultar o que isso significa. Assim como acontece com os coelhos, não é fácil captar os sentimentos de coreanos e coreanas. Não são muito expressivos, nem são dados a abraços e colo - bem como a Pipoca. Mas quem conviveu junto, sabe. Para nós, só restam a dor e as lembranças. E a esperança de um reencontro. Quem sabe.