Um dos discos mais famosos da história do
rock, The Wall, da banda inglesa Pink Floyd, não é cultuado até hoje apenas por
sua qualidade musical. Roger Waters, baixista da banda, trabalhou uma série de
questões psicológicas e políticas nas letras do álbum temático. No início dos
shows da atual turnê de Waters, logo aparecem as referências a seu pai. Uma
foto, o nome completo, a data de nascimento e morte. O pai de Waters faleceu na
II Guerra em 1944, deixando Roger órfão aos cinco meses de idade.
É estranho talvez pensar em como a morte
prematura de um pai, que Waters sequer conheceu, tenha o afetado a tal ponto
que se tornou assunto recorrente no álbum. Ficamos sensibilizados com os
horrores de guerras quando vemos fotos de crianças na África sem pernas após
terem pisado em minas terrestres; em filmes que retratam guerras, como por
exemplo, “O Resgate do Soldado Ryan”; no videoclip da canção “Brothers in Arms”
do Dire Straits; nos horrores praticados por guerrilhas com crianças. A morte é um fantasma em nossas vidas, mas ainda mais dolorosa para
aqueles cujos entes queridos foram vitimados prematuramente, fugindo do curso
natural da existência. Se você perdesse seus pais ou irmãos em uma guerra,
seria compreensível você criar horror à guerra e suas nefastas consequências.
Mas será que para um bebê de cinco meses isso é tão relevante assim? E para
aqueles cujos parentes passaram por guerras e sobreviveram? Será a guerra ainda
assim traumática de forma indireta?
Não posso compreender exatamente o que se
passou na cabeça de Waters. The Wall dá uma boa pista, mas há uma canção que
não foi lançada no álbum e que mostra um pouco o quanto a morte de seu pai impactou na
sua vida. No filme “the Wall”, lançado alguns anos depois do álbum, temos a
canção “When the Tigers Broke Free”. Nesta música, Waters descreve como ele acidentalmente encontrou uma carta do Rei da Inglaterra comunicando a morte do seu pai –
escondida em uma gaveta de fotos antigas. Na última estrofe, de forma
dramática, Waters descreve da seguinte forma a batalha que vitimou seu pai:
It was dark all around.
There was frost in the ground
When the tigers broke free.
And no one survived
From the Royal Fusiliers Company C.
They were all left behind,
Most of them dead,
The rest of them dying.
And that's how the High Command took my daddy - from me.
There was frost in the ground
When the tigers broke free.
And no one survived
From the Royal Fusiliers Company C.
They were all left behind,
Most of them dead,
The rest of them dying.
And that's how the High Command took my daddy - from me.
“Foi assim que o Alto Comando tirou meu pai de mim”. Evito utilizar o pronome “lhe” na minha tradução livre para enfatizar a dor que lhe causou a morte de seu pai, como ele próprio enfatiza no fim da canção, seguido de um silêncio repentino ensurdecedor. Provavelmente essa dor não foi lhe passada diretamente, mas o modo como tais acontecimentos afetaram sua mãe e demais parentes certamente não lhe passou despercebido. Nossas ligações emocionais com nossas famílias não permitem que escapemos da dor que ali convive à espreita, como um fantasma morto que nos assombra. Ela aparece, por exemplo, quando vemos como nossos pais lidam com situações limítrofes que nos afetam. (In)felizmente, temos uma forte capacidade empática de perceber a dor das pessoas próximas. Não é para menos que histórias de nossos avós ou pais nos emocionam, mesmo quando ocorreram em um passado distante, antes mesmo de nascermos.
Talvez por isso a guerra seja tão horrível. Os custos da guerra
não se resumem ao impacto sofrido por quem viu a guerra e recebeu a notícia da
morte de parentes e amigos. Essas dores perduram nas gerações seguintes, mesmo
quando não se tocam nesses assuntos, justamente devido à dor que causam. Os
traumas de nossos pais fazem com que eles próprios, para se protegerem, se
distanciem de si mesmos. Esse processo de distanciamento de si próprios
impede que eles dividam suas dores com os outros, mesmo com seus filhos. E,
assim, nos distanciamos de nossos pais e até de nós mesmos, porque aprendemos
em casa que não é bom se aproximar de si mesmo e lidar com suas próprias
tristezas e alegrias.
Waters perdeu o pai na guerra.
Mas quanto sua mãe também não morreu com isso? O quanto ele próprio não perdeu
a si mesmo ao ver seus entes mais queridos se distanciarem de si mesmos para se
protegerem? Não é à toa que o disco se chama “The Wall”. Não é à toa que
construímos muros em volta de nós mesmos. Meu pai sobreviveu ao totalitarismo
comunista e à Guerra da Coreia, minha mãe sobreviveu às péssimas condições de
vida em um país destruído por uma sangrenta guerra civil. O quanto deles eu
perdi com a guerra? E o quanto eu perdi de mim mesmo? Quão alto é o muro que
criamos entre nós e o mundo?
“Mother, did it need to be so high?” (“Mother”, Pink Floyd - The Wall)