sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

A abelha e a Citrus

Comecemos do jeito clichê.


Era uma vez uma abelha aficcionada por Schweppes Citrus (espero que a Coca-Cola não me processe). O problema é que poucas pessoas e abelhas bebem esse refrigerante, o que a tornava ainda mais desejada por essa abelha. Ela ficava zanzando em volta das poucas latinhas verdes que encontrava e sonhava um dia em conseguir experimentá-la. No entanto, ela acreditava que, das poucas vezes que tentou realmente parar de zanzar e ir direto ao ponto, teria morrido esmagada por algum humano (lembremos que a abelha era seguidora de Gandhi e, portanto, acreditava na reencarnação e na não-violência: ela jamais enfiaria seu ferrão na mão de seu agressor – o que seria coerente apenas com a idéia de guerra justa, não com a idéia de não-violência).


Por isso, a abelha continuava zanzando em volta do refrigerante apenas. O mais leve sinal de ameaça levava-a se afastar, mas logo se aproximava novamente de seu objeto de adoração. Seu maior desejo era que, em um dia qualquer, a latinha fosse derrubada, o líquido se espalhasse e ela pudesse provar a Citrus sem o menor esforço e risco. Sua fixação era tanta que nem os outros refrigerantes já experimentados e aprovados por inúmeras abelhas mundo afora lhe chamavam a atenção. As gostosas guaranás, colas e demais eram comumente vistas cheias de abelhas promíscuas. A Schweppes não. Poucos tinham o gosto de prová-las e seu cheiro era dos mais agradáveis.


Obviamente, as flores não lhe chamavam qualquer atenção. Essas seriam as mais fáceis: sem qualquer ameaça, ela poderia chegar nelas e usufruir facilmente de seu néctar, como milhares de outras abelhas faziam desde tempos imemoriais. Poderia pular de uma flor para outra e experimentar os diferentes tipos de néctar. Mas não, sua meta era a Schweppes Citrus. Entretanto, com medo de arriscar e levar um belo de um tapa, ficava apenas zanzando em volta, esquecendo outros refrigerantes e flores. Tinha conhecido duas outras abelhas que também gostavam de Schweppes, mas essas estavam hoje mortas pela raiva de chinelos humanos.


Certa vez, viu um homem caminhando na rua, cambaleando entre duas mulheres. Abraçado a elas, ele carregava uma garrafa com um cheiro forte, cujo conteúdo, quando ele não estava bebendo, era derramado ao longo do caminho. Ele ria alto, assim como as mulheres que o acompanhavam. A abelha, que estava em um momento depressivo pensando na sua inalcançável Citrus, sentiu o cheiro forte do líquido e, embora tenha o achado inicialmente um pouco asqueroso, sentiu enorme curiosidade de prová-lo.


A abelha tinha conhecido a cachaça. Com apenas uma gota daquele líquido amargo (que para a abelha era como um barril), a abelha se sentiu desinibida e pouco seletiva. Foi em busca do néctar de camélias, bromélias, margaridas, orquídeas e tulipas, mas também de milhares de flores horrorosas com néctar de qualidade muito duvidosa. Pulava de uma flor a outra de forma fugaz e, às vezes, dividia promiscuamente uma mesma flor com mais uma ou duas abelhas. Em um momento de pouca consciência, tentou se aproximar de uma planta carnívora que pensava ser uma flor. Quase foi comida, mas percebendo o erro, se afastou a tempo.


Algumas horas depois o efeito de entusiasmo se desfez e voltou a pensar na idealizada Schweppes Citrus. Chorou amargamente por sua paixão, enquanto se arrastava pelo chão sem conseguir voar. De repente, um Nike Shox 44 esmagou-a sem piedade. Provavelmente sem querer. E a abelha não reencarnou. FIM

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

O peso de uma vida sem Graça

Paula era a filha ideal. Fizera tudo que seus pais esperavam: estudava Direito na melhor faculdade da região, frequentava a igreja semanalmente e tinha uma vida casta até então. A vida noturna parecia-lhe inóspita – sentia-se como uma arara na Antártida. Tinha, portanto, uma vida quase asceta, coisa que ela só pretendia interromper quando encontrasse alguém que valesse a pena. De preferência alguém que resultasse em casamento, único momento em que a castidade lhe poderia ser completamente desnuda. Pelo menos, era o que sonhava - exatamente como os seus pais também sonhavam.

Mas Paula era uma menina charmosa: com pouco mais de 20 anos, exalava feromônios que deixavam ensandecidos rapazes da idade dela. Desde sua adolescência, vários garotos tentavam se aproximar dela. Alguns, mais espertos, já viam de antemão toda a burocracia familiar que poderia resultar uma relação com ela, além é claro da própria dificuldade homérica de estabelecer alguma relação mais do que amigável com ela. Ela também tinha um irmão, que poderia ser empecilho para possíveis pretendentes que não combinassem com a cartilha familiar, uma vez que, até o momento que se mudou para estudar, também tinha os mesmos valores de sua irmã e seus pais. A cartilha familiar previa um bom moço, estudioso, branco, ativo na igreja e inteligente. Seu irmão, fora de casa, tentou por um ano algumas namoradas convenientemente castas, até se perder em uma taberna fétida com uma prostituta de baixa categoria. Desde então, esfregava-se quinzenalmente com alguma profissional do sexo e o remorso inicial, aos poucos, foi se esvaecendo.

Não obstante, Paula continuava em casa, tentando seguir a cartilha. Possíveis pretendentes, no entanto, apareceram. Ela judiciosamente os avaliava, mas antes, se aproximava, dava inocentes abraços e beijos, tudo na mais completa amizade. Pelo menos em sua opinião, que não era compartilhada com os hormônios de seus pretendentes, cujas intenções, com disfarce inicial de amigo, eram essencialmente instintivos e carnais. Quando estes estavam sedentos por amor e sexo, ela chegava a pensar neles de modo mais sério, mas só de relance. O medo de decepcionar os pais, o medo de estar saindo da cartilha, o medo de algum deus oculto a condenando, o medo de se arriscar e se envolver, o medo de “perder o amigo”... tudo isso se juntava de tal modo que, para ela, era mais fácil continuar então a fingir que nada estava acontecendo. Seus beijos na bochecha e abraços continuavam, a sua perna encontrava a do rapaz debaixo da mesa inocentemente, seus joguinhos sentimentais e disfarçadamente sexuais (até para ela) continuavam.

Até que acontecia. A pobre criatura se declarava. Aconteceu repetidas vezes. Dezenas de rapazes deram com a cara no vidro. Após o não e ouvindo o discurso da amizade entre eles, os rapazes saíam desolados. Alguns, mais românticos e castos, continuavam sua busca por outras meninas do gênero – quando achavam, acabariam se casando com elas e tendo filhos que propagariam o falso evangelho legalista moral. Mas outros acabariam como o irmão de Paula, perdido na sarjeta depois de penetrar duas meretrizes.

A ideologia do conto de fadas era a melhor para Paula, todavia. Aos 18 anos, ao sair do banho, olhou-se de relance no espelho e percebeu quão harmonioso era o seu corpo. Seus seios não eram exageradamente grandes, porém tampouco pequenos. No conjunto de seu corpo, tinham exatamente a forma certa, ondulados e eretos. Suas pernas também eram bonitas e seu corpo era curvilíneo: nada excessivo ou exagerado, mas um corpo bonito aliado a um belo rosto, cabelos lisos e olhos claros. Fingiu que isso não era importante na sua vida, que eram os valores errados, que deveria se concentrar nos valores corretos. Mas a cada dia, buscava cuidar mais da alimentação a fim de manter sua beleza juvenil. Apesar disso, não queria de forma alguma reconhecer que tinha virado mulher e que tinha desejos outros além de amizades e bonecas.

Paula continuou com as “amizades inocentes”. Continuou andando de mãos dadas com “amigos” e dando-lhes abraços apertados. Por vezes ela se sentia atraído por alguns deles, mas pensava em um defeito deles e logo tentava se livrar desses desejos. As vítimas a abraçavam com vontade, enlaçando-a pela cintura e sorrateiramente acariciando-lhe as costas no intervalo entre a calça e a blusa – certamente com vontade de ir muito além. Logo depois, ela dizia como era importante a amizade entre eles.

Afinal, ser criança era muito mais conveniente para Paula. Crianças estudam e podem tentar satisfazer os desejos dos pais. A vida de Paula era dedicada a satisfazer os pais. As opiniões dos pais eram o que mais contavam na vida dela e arriscar-se com garotos talvez fosse a forma mais terrível de obter a desaprovação familiar.

Mas um dia, descobriu de alguma maneira que seu pai tivera uma amante no casamento. Paula já tinha seus 23 anos. Seu infantil sorriso se desvaneceu repentinamente. Satisfazer os pais parou de fazer sentido. A religião de seus pais não fazia sentido. Nada fazia sentido. Pensou diversas vezes em suicídio. E então descobriu as peripécias sexuais de seu irmão fora de casa através de uma amiga. Esta já tinha sido mais comportada, até se deixar levar pelo papo sedutor do irmão de Paula, que entusiasmada em um momento ébrio, descreveu para Paula detalhes sórdidos de seu momento de êxtase em uma festa. Paula finalmente concordara em ir a uma festa da faculdade no momento de crise.

Desolada e sem poder contar com ninguém, sentou-se na calçada às 4 da manhã e, amargamente, chorou. Viu colegas suas entrando em carros com pessoas que sequer conheciam, homens e mulheres. Mas viu também uma colega sua, ternamente abraçada com seu namorado, rindo de uma piada carinhosa. Ficou confusa e pediu a Deus que, se ele existisse, que a tirasse de lá. Um rapaz de duas turmas acima da dela, Roberto, também saía da festa, ligeiramente alcoolizado, mas com o rosto abatido. Tinha acabado há pouco seu relacionamento de 5 anos com a namorada, com quem, acidentalmente, tivera um filho natimorto. Merecido pensou, fora infiel duas vezes durante o período. Sentou-se ao lado de Paula por vê-la numa situação tão ruim ou pior que a dele.

E Paula resolveu se abrir. E falou tudo, detalhe por detalhe. Roberto ouviu-a pacientemente. Lembrou-se que tivera também um passado religioso e que, durante a adolescência, também era bastante regrado. Lembrou-se de como abandonara tudo, mas que tinha certa saudade daquele tempo, em que encontrava amigos na igreja nos almoços comunitários. E perceberam que tinham muita coisa em comum – eram da mesma comunidade, de onde Roberto desaparecera.

Em meio a conversa, ambos lembraram que o pastor sempre lhes falava de que nada precisavam fazer para merecer o amor de Deus. Paula pensou na sua vida em busca de satisfazer os pais para merecer o amor deles, enquanto que, pela primeira vez, Roberto pensava sobre essas palavras com uma visão mais madura.

Lentamente, Paula reclinou sua cabeça no ombro de Roberto. Fechou os olhos calmamente e se aproximou mais de Roberto, sem inocências. Roberto olhou para ela. O rosto de Paula transparecia a tranquilidade de quem deixara de carregar um peso. Ele a enlaçou pela cintura, enquanto olhava para a única estrela que aparecia entre as nuvens.