sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Obsessão

"Canetas alinhadas em cima da classe; razonetes, tabelas e gráficos desenhados à régua; teses e trabalhos escritos durante a madrugada e revisadas dezenas de vezes; gavetas com as marcas dos objetos que estão sempre no mesmo lugar; não tomo café porque faz mal à saúde, me vê um chá aí; cortei os doces e tudo mais que é doce na minha vida; obrigado pelos parabéns, agora parem de pular e gritar, por favor; o almoço tem que ser em ponto, estás atrasada de novo; nove não é o suficiente, alguém estava estudando enquanto você estava aí feito bobo deitado na cama; as linhas desse edifício não estão corretas; essa maquete está um pouco fora de proporção; o nariz do personagem está mal-desenhado; as folhas têm que ser dobradas em três pedaços, não dois, existe um padrão; não, não fumo, nunca fumei, nunca fumarei; não bebo, depois acabo perdendo o controle; emoções também devem estar sob controle, abraços devem ser evitados, beijos também; não sinto saudades; maldito ônibus atrasado por dois minutos; olha a meia fora da gaveta, isso estraga as gavetas, você não faz nada direito?; formato seus trabalhos nas normas da ABNT; Deus quer que você leve uma vida regrada, sóbria e ascética; se é pra fazer, faça bem feito; se você quer que Deus te abençoe, como você oferece apenas umas míseras moedas para ele?; você tem que ser uma pessoa produtiva; você quer ser reconhecido ou ter valor? Faça por merecer; você tirou 7 em inglês? Que tipo de profissional você acha que vai ser?; com esforço conseguiremos tudo, até a salvação." Em cinco minutos, todas essas imagens e sons tinham vindo até a cabeça do rapaz, que se revirava inquieto na cama.

Dormir não estava mesmo muito fácil. “Faço tudo bem feito, mas onde está o limite?”, perguntou ele para si mesmo. Ligou o abajur e procurou algum livro no seu criado-mudo. Havia alguns ali. Abriu seu livro do García Marquez, “Memórias de minhas putas tristes”, que ele já tinha começado a ler. Depois de algumas páginas, a seguinte frase da página 74 o perturbou:

"Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, casa assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente em ordem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra a minha negligência; que pouco generoso para encobrir minha mesquinhez e sempre penso o pior, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que ninguém saiba como pouco me importa o tempo alheio. Descobri, enfim, que o amor não é um estado da alma e sim um signo do zodíaco."

“Se o amor for um signo, ele nada pode mudar nesse mundo...” – pensou o rapaz novamente., suspeitando da afirmação. Fechou o livro. Ligou o computador, o Facebook, o Orkut, o MSN, o Twitter, o MySpace e o Jango. As caixas de som começaram a tocar a canção “Walk On” do U2:

And love, it's not the easy thing
The only baggage, that you can bring
Not the easy thing, the only baggage you can bring
Is all that you can't leave behind

[…]

All that you fashion, all that you make
All that you build, all that you break
All that you measure, all that you feel
All this you can leave behind

All that you reason, all that you care
(It's only time and I'll never fill up all my mind)
All that you sense, all that you scheme
All you dress up, and all that you see
All you create, all that you wreck
All that you hate…

Ignorou as pencas de mensagens de amigos/as (?) no MSN e desligou tudo, à exceção do abajur. Abriu um livro de poemas de Dietrich Bonhoeffer, seu teólogo preferido - sim, desde que ganhara o livro, tinha agora um teólogo preferido:

“Sustentado apenas pelo mandamento divino e pela tua fé,
e a liberdade acolherá teu espírito com júbilo”.

"Apenas, mais nada. É assim que somos livres". Foi a última coisa que ele pensou antes de dormir.