quarta-feira, 23 de junho de 2010

(Não) somos porque temos

Quando eu era pequeno, eu e minha mãe costumávamos caminhar incansavelmente pela Rua Voluntários da Pátria no centro, uma espécie de “25 de Março” dos porto-alegrenses, procurando por produtos baratos. Por exemplo, camisetas brancas da Hering. Embora existissem já lojas da Hering em pontos mais nobres da cidade, não fazia o menor sentido na cabeça da minha mãe comprar pelo dobro do preço o mesmo produto. Melhor era entrar em uma dezena de lojas comparando os preços, a fim de não perder um único centavo (mesmo que o gasto com a sola do sapato acabasse talvez sendo superior ao dinheiro poupado).

Meus pares de tênis, lembro-me bem, duravam de um a dois meses até ficarem completamente destruídos e furados. Afinal, pés de crianças crescem, não vale a pena comprar coisa melhor. Certa vez, meu pai trouxe sapatos para mim e para minha irmã, cujos tamanhos deveriam estar próximos de 30, o que causou uma séria briga conjugal. Meu pai era pão-duro, mas certamente minha mãe era mais radical.

Uma certa dose de razão havia no posicionamento da minha mãe. Além de ela ter crescido em um contexto de guerra, em que a escassez era extrema na Coreia, as condições do Brasil não eram das melhores. A inflação incessante engolia o poder de compra das famílias rapidamente e a instabilidade econômica era grande no começo dos anos 1990. Além disso, meu pai estave em fases mal-sucedidas financeiramente naquele período, em que dívidas apareciam e a crise era iminente.

Na época, eu estudava em escola pública, carregando alguns milhares de cruzeiros no bolso que só serviam para comprar balas. Havia, obviamente, colegas bem mais pobres do que eu. Lembro de um colega filho de empregada doméstica que morava em Viamão e cujas roupas esfarrapadas evidenciavam sua condição. Embora em situação difícil por vezes, minha família poderia ser considerada da classe média – a situação era difícil porque tínhamos um padrão de consumo de classe média. Outros colegas tinham melhores condições, é verdade, uma vez que a escola pública a que me refiro estava em um bairro de alta renda (Moinhos de Vento). Mas pouco me importava em caminhar por horas para comprar uma camiseta ou usar um par de tênis que, depois de andar meia quadra, já me deixava só com a meia. Tudo bem que os amigos da família eram mais ricos, assim como as famílias da comunidade coreana em geral, mas eu não me importava muito com esse fato.

Entrei no Colégio Militar e lá as pessoas em geral pertenciam à classe média ou média alta. Não eram ricos como nas escolas particulares mais famosas, mas não lembro de ter conhecido pobres. As famílias dos alunos do Colégio Militar eram famílias de classe média que valorizavam a educação e que almejavam o sucesso de seus filhos - ou seja, que eles tivessem condições para galgar a ladeira em direção a classes de renda superiores. Minha igreja também, predominantemente de classe média alta, me fornecia amigos com boas condições financeiras. Era natural que meu padrão de consumo passasse a refletir isso. Posteriormente, na UFRGS, meus colegas e amigos eram das classes alta e média alta. E aos poucos, fui perdendo a simplicidade no consumo, embora continuasse um pouco sovina como meus pais. Minha irmã entrou na Medicina, eu na Economia: o contexto e as companhias eram outras.

Nesse processo de entrar na vida adulta, tenho a impressão que perdi algo no meio do caminho. Minha família está em melhores condições financeiras hoje, eu mesmo ganho um salário. Posso manter um nível de consumo similar aos das pessoas que me rodeiam. Mas a simplicidade e os valores mais básicos da vida parecem ter se perdido um pouco. Torna-se mais importante beber Guinness (embora essa cerveja seja de fato muito boa) do que beber cerveja barata com velhos amigos em algum canto. É como o alferes do conto de Machado de Assis que só se enxerga no espelho quando está vestindo seu uniforme. E cada vez mais, me afasto da realidade social da maioria das pessoas que vivem nesse país. Não é culpa por consumir, é apenas ter percebido que posso ter entrado, sem perceber, no jogo da nossa sociedade. O valor das pessoas (e, portanto, meu próprio valor) não está no ter, mas isso não é o que a sociedade tenta nos dizer. Mesmo sabendo disso, não é difícil sermos engolidos pelos ditames do mundo.

sábado, 12 de junho de 2010

Ideias esparsas

Tenho sido incapaz de escrever ultimamente. É estranho que existam épocas em que meu cérebro simplesmente não consegue expressar no papel o que tenho pensado. Também tenho sido incapaz de ler muito, o que sempre foi um costume meu. Tenho a impressão de que meu novo trabalho como professor, mesmo sendo de apenas 12 horas por semana, e a minha insistência em continuar pesquisando ou dando aulas particulares, têm me impedido de pensar, ler e escrever. Ocupado com as tarefas e os compromissos, abdico de estruturar meus pensamentos.

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Recentemente, estava lendo um livro escrito por dois filósofos (Jean Hampton e Jeffrie Murphy). Uma amiga minha, que fez mestrado em filosofia na Inglaterra, emprestou-me o livro, cujo título é “Perdão e Misericórdia” (Forgiveness and Mercy). Não é um livro de igreja. É um livro com dois filósofos pensando sobre o tema: Hampton até é cristã, mas Murphy não é. Os textos dos autores se intercalam, mostrando um interessante debate entre os dois em exercícios que, sem dúvida, envolvem intensa introspecção. Quando os autores tratam de conceituar sentimentos relacionados a ódio e ressentimento, é difícil não se identificar com alguma descrição. Tem sido uma leitura interessante.

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Ao mesmo tempo, tenho pensado na relação entre piedade religiosa e moralidade conservadora. É incrível como as pessoas tendem a associar fortemente esses dois aspectos. Talvez porque as pessoas mais piedosas tendam também a ser as mais conservadoras moralmente (e às vezes politicamente). Família e igreja/religião são muito ligadas, porque são os pais que costumam [tentar] passar sua religião para os filhos. Acredito que na verdade os pais passam uma caixa cheia de ferramentas. Nela estão contidos os valores que eles professam, alguns muito úteis e até atemporais e universais, outros bastante anacrônicos e refletindo a época e o local em que foram criados. Mas também está contido a religião, a piedade, a fé daqueles pais. Os filhos então pegam a caixa e, em geral, decidem em termos de ficar com a caixa inteira ou jogá-la fora com tudo o que tem dentro. Falo isso porque eu mantive o básico da fé de meus pais e outras pessoas influentes na minha formação religiosa e moral. Entretanto, ao manter isso, tenho dificuldades para jogar outras coisas fora, embora eu racionalmente saiba que elas devem ser jogadas fora. Ou melhor, tenho dificuldade de me livrar de certos hábitos e costumes que são inclusive incoerentes com a fé que eu professo, mas que geralmente as pessoas piedosas costumam praticar (lamentavelmente). Acreditar em Deus e na fé cristã não significa adotar todas as posições conservadoras e absurdas muitas vezes adotadas pela maioria dos cristãos. Muito pelo contrário, a fé cristã deveria ser uma fé libertadora, ainda que responsável. Por exemplo, não são os assim chamados cristãos que mais julgam o comportamento alheio quando justamente Cristo pede-nos para não julgarmos os outros?

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O post anterior a este esteve por muito tempo no topo da lista (esse aí embaixo). Lamentavelmente, um post polêmico e que tenho dúvidas até agora se deveria tê-lo escrito. Apagá-lo, no entanto, seria precipitado - pelo menos é o que penso no momento. Não queria julgar pessoas com aquele texto, até porque meus personagens muitas vezes são a mistura de várias pessoas, incluindo eu mesmo. Espero que os leitores leiam os outros e possam ver que nem sempre minhas idéias estão esparsas e desorganizadas.