Há duas semanas, fui para um congresso acadêmico na Holanda. Mandei e-mail para meu amigo Jan, que mora na Alemanha há cerca de três horas de Utrecht, dizendo que poderia dar uma passada por lá. Jan disse que eu poderia ficar lá no fim de semana antes de minha volta ao Brasil, marcada para às 10 da manhã de segunda-feira, horário em que partia o avião do aeroporto de Schiphol em Amsterdam.
Isso exigia que eu estivesse no aeroporto às 8 da manhã. Infelizmente, não havia trem saindo cedo de manhã da Alemanha para chegar a tempo no aeroporto. O remédio era voltar para a Holanda na noite de domingo. Minha peculiar pão-durice achou que a melhor alternativa era dormir no aeroporto. Entretanto, o Fábio e o Ricardo, amigos que estavam no congresso, ficariam até domingo de manhã na casa de meu ex-colega Philipe em Amsterdam. A casa estaria vazia: eles teriam ido embora de manhã, eu chegaria à noite e os moradores estavam viajando de férias. O jeito era arranjar um jeito de me deixar a chave para que eu não precisasse dormir no aeroporto. Assim, poderia ter uma noite decente de sono e sair às 7 da manhã do apartamento em Amsterdam.
O Fábio mandou e-mail mostrando o esquema a ser usado. O Ricardo, que sairia mais tarde, deixaria a chave presa em um fio. Esse fio, fixado por um band-aid, estaria com uma de suas pontas para fora da caixa de correio. Eu puxaria esse fio e pegaria o molho de chaves que estaria dentro da caixa de correio. "Perfeito", pensei. "Quase perfeito", pensei em seguida. O Fábio não tinha me enviado o endereço do lugar. E nem me enviou. Philipe, o dono da casa, me mandou e-mail 5 minutos antes de eu abandonar a Alemanha com o endereço. Ufa.
Mais tranquilo, fui para Amsterdam e tentei seguir as instruções do Philipe para chegar na casa dele. A reforma dos metrôs de Amsterdam impediu-me de seguir essas instruções e, mal orientado por um guarda holandês, peguei um bonde e parei dois pontos antes do correto. Era meia-noite e caminhei praticamente sozinho na rua em direção ao prédio do Philipe. Cheguei lá uns 15 minutos depois, com duas mochilas pesadas e uma mala. "Ufa", pensei, "finalmente vou poder descansar". Há uma semana já sofria devido a uma dor nas costas por excesso de peso. Chegar era um alívio.
Olhei para a caixa de correio e não vi fio algum. Coloquei a mão na estreita fenda da caixa de correio. Apenas as pontas de meus dedos passaram, o que de nada adiantou, porque elas não acharam fio algum. Era quase 00:30 em Amsterdam e eu estava com três bagagens na escuridão. Olhei para os lados - ninguém. Lembrei de meu celular - sem bateria. Apertei o interfone - ninguém como esperado. Parei e refleti sobre a possibilidade de dormir em algum canto ali mesmo na rua.
Nessa hora, apareceu uma cabeça numa janela do prédio. "Uma esperança", disse pra mim mesmo. "Ei, sabe se tem alguém aí no apartamento número 52?", perguntei. Ele retrucou que achava que não e sumiu após meu desalentado agradecimento. Fiquei sozinho de novo. Fiquei 5 minutos pensando se tentava chegar a alguma estação, mas a luz da janela de meu último interlocutor continuava acesa. Não resisti e gritei: "hey!". A cabeça apareceu de novo. "Desculpa te incomodar a essa hora, mas posso usar sua internet? Preciso saber onde está a chave que meus amigos disseram que estaria aqui. É bem rápido!". Após um breve momento de hesitação, ele disse: "ok, espere um pouco". Trinta segundos depois, o portão do prédio se abriu.
Agradeci o cara e disse que lamentava pelo incômodo. Ele e sua mãe, ambos holandeses, me receberam bem e disseram pra eu me sentir à vontade. A mãe inclusive pediu desculpas pela bagunça. A internet, todavia, não trouxe novidades. Eu tinha seguido as instruções corretas. O bem-feitor então pegou uma haste fina de metal e disse que tentaria pescar a chave, uma vez que provavelmente o fio que estava preso tinha descolado. Voltamos para as caixas e ele tentou o procedimento, mas nenhum barulho denunciou a existência de qualquer chave.
Já desanimado, voltamos para dentro do prédio, mas então percebemos: a caixa de correio estava aberta para dentro do prédio. E sim, lá estava a chave com o band-aid descolado. Era uma da manhã em Amsterdam e eu me sentia renascido. Agradeci muito o holandês, mas não tinha presente para lhe dar. Não precisava dormir na rua com laptop e malas. Poderia ter uma noite decente.
E pensar que toda sexta-feira, a igreja luterana do Centro de São Paulo recebe cerca de 200 moradores de rua dentro do templo. E eu desesperado com a possibilidade de não ter teto por uma noite em um tranqüilo bairro holandês. Como posso não me importar então com quem diariamente dorme nas fétidas ruas do Centro paulistano ou em qualquer outro lugar?