quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Eu gostava da Pipoca

Eu gostava da Pipoca. Talvez ela não fosse muito expressiva como os animais de estimação mais comuns, tais como os cachorros e os gatos. Ficava geralmente parada no canto da sala, fungando incessantemente, como fazem todos os roedores, ou mastigando alguma folha de couve.

Lembro de duas ocasiões que a deixavam mais agitada. Uma delas era o momento de ser presa na sua gaiola à noite. Barreiras eram feitas nas entradas dos cômodos: era preciso impedi-la de se refugiar debaixo dos móveis ou atrás do freezer, de onde só saía enxotada por uma vassoura. A Joana fazia essa tarefa de um dos lados do freezer, enquanto eu me colocava perto do outro lado, impedindo a passagem da coelha para outro cômodo. Vendo-me à entrada da porta, Pipoca reconhecia a derrota e entrava na gaiola ainda contrafeita, o que era perceptível por seus ruídos consternados. Pior era se esquecíamos de soltá-la cedo pela manhã, quando se tornava ainda mais nítida a irritação da coelhinha trancafiada.

A segunda ocasião era quando uma bergamota aromática era descascada. Sempre acreditei, por influência de desenhos animados na minha infância, que coelhos eram loucos por cenoura. Pipoca até gostava de cenoura, mas evidentemente preferia couves. Mas mais do que couves, quando descascávamos uma bergamota perto dela, Pipoca se levantava em duas patas fungando ansiosamente. Pior foi um dia em que deixamos um cesto de bergamotas trazidas do interior no chão da cozinha. Ao nos ver distraídos, Pipoca sorrateiramente roubou uma bergamota do cesto, segurando-os com seus proeminentes dentes frontais. Em seguida, saltitou rapidamente em direção à sala, indo para seu canto comer os gomos avidamente.

Eu me afeiçoaria à Pipoca de qualquer maneira - até porque a coelhinha já fazia parte da vida da Joana quando começamos o nosso relacionamento. Em muitas ocasiões, Pipoca foi a única testemunha ocular e silenciosa de momentos importantes do início do nosso namoro. Como filho de imigrantes coreanos, talvez meu apreço pela Pipoca fosse ainda maior porque coelhos têm um papel especial na cultura coreana. Diz-se que a península coreana se parece com um coelho de perfil. Parece mesmo: é fácil identificar a orelha e o focinho, bem como as patas sobressalentes perto de onde hoje é a fronteira entre Coreia do Sul e Coreia do Norte. Além disso, a mais famosa canção infantil na Coreia, que me lembro até hoje, versa sobre um coelhinho:

산토끼 토끼야  (Coelhinho da montanha)
어디를 가느냐  (Para onde você vai?)
깡충깡충 뛰면서  (Saltitando enquanto corre)
어디를 가느냐  (Para onde vai você?)

Mas coelhinhos são presas: a Coreia foi por anos dominada por seus vizinhos à leste e à oeste. No início do século XX, o país foi vítima da expansão territorial do Império Japonês. A dominação militar significou a tentativa de acabar com a cultura coreana, com a adoção da língua japonesa nas escolas. Centenas de mulheres coreanas serviram como escravas sexuais para o Exército nipônico, entre outras atrocidades até hoje não reconhecidas pelo Estado japonês.

Certo dia, quando eu estava no trabalho, a Joana me ligou chorando do interior, para onde tinha levado a coelha durante um feriado mais prolongado. Pipoca havia morrido. Não sabemos se foi infarto fulminante ou se ela comeu alguma frutinha no jardim. Talvez as cachorras de alguma forma tenham provocado sua morte acidentalmente: era normal que corressem atrás da coelha. Pipoca, como boa presa, estava sempre fugindo das brincalhonas cadelas no jardim. Enfim, não se sabe a causa mortis: só se sabe que seu pequeno coração havia parado repentinamente. Eu não sabia o que dizer para a Joana, que chorava copiosamente ao telefone. Impotente dentro de um prédio no centro de Porto Alegre, a quilômetros de distância, não era possível fazer muita coisa.

Desde que tinha chegado no interior alguns dias antes, Pipoca corria feliz no espaçoso jardim cheio de frutas e verduras, mas sua alegria durou pouco. Assim também foi com a Coreia, libertada do jugo externo com o fim da Segunda Guerra. Pouco tempo após sua libertação, o país passou a ser vítima dos jogos de poder internos e da Guerra Fria: o território coreano em forma de coelho foi dividido em duas partes, uma comunista, outra capitalista. Milhares morreram na guerra civil, famílias foram divididas, pontes cortadas. Muita gente perdeu sua fé em qualquer coisa que acreditasse.

O território não é mais um coelhinho só. A divisão continua. Os coreanos carregam a dor de suas famílias divididas, muitas das quais não se comunicam há mais de sessenta anos. É difícil auscultar o que isso significa. Assim como acontece com os coelhos, não é fácil captar os sentimentos de coreanos e coreanas. Não são muito expressivos, nem são dados a abraços e colo - bem como a Pipoca. Mas quem conviveu junto, sabe. Para nós, só restam a dor e as lembranças. E a esperança de um reencontro. Quem sabe.

sábado, 30 de junho de 2012

Saints and sinners


***Post escrito em meu Facebook Notes em 25 de abril de 2010

I am not a great movie fan, as some may already know. The problem is simply that I am too lazy to go to the cinema by myself: it seems easier to find a book to read seated on the couch. However, after seeing only few American and European movies we become able to understand that there is a basic difference between these two schools of cinema – at least on average. American movies tend to clearly divide the characters in two categories: it can be angels against demons, heroes against monsters, policemen against thieves, good against the evil, the Allies against the Axis. On the other hand, European movies are more ambivalent and characters often have qualities and defects. In some way, they are more realistic.

This seems to be a criticism to the American way of making movies. Indeed it is somehow. But I do recognize that opposite forces are parts of our lives as well. Our dominant cultural and religious influence seems also to emphasize this point. In our Western culture (which I am part of since I am a Brazilian, despite my Korean heritage), there are gods and devils, heavens and hells. Christianity seems sometimes to emphasize this dualistic view. But a thorough investigation may show us that dualistic views are more Greek rather than Christian. It does not mean it is entirely wrong, but looking to the world only through these dualistic lenses may not be a good choice. It is easy to fall into the temptation to see ourselves only at the good side – and then it becomes easy to end up criticizing those who are supposedly beyond the dividing line.

Recently I was surprised to read a book written by an American (and a Californian, where most movies are made!) in which people were portrayed as belonging to both sides, the good and the evil – much more like European movies or Dostoyevskyan characters. When describing the site in which the story takes place, John Steinbeck asserts the following on Cannery Row (1936): 

“Its inhabitants are, as the man once said, ‘whores, pimps, gamblers, and sons of bitches’, by which he meant Everybody. Had the man looked through another peephole he might have said, ‘Saints and angels and martyrs and holy men’, and he would have meant the same thing”.


As a Christian, I have received some kind of Puritan and moralistic influence since I was a child. The “world” seemed to be a strange and dangerous place. Only few years ago I realized how far I was from the truly Christian idea that we are all sinners. We can even grasp it intellectually, but to apprehend it fully is a step ahead. As most our movies do, it is more comfortable to put us on the “right” side and judge everyone else. But days go by, and it becomes clear how much darkness live in our hearts. That’s why Dostoyevsky’s Raskolnykov from Crime and Punishment will never be outdated. That’s why Steinbeck still talks to us. One of the most important discoveries in my spiritual life was the very fact that I am not less sinner than prostitutes or thieves. Only recognizing it we can depend entirely on God's Grace. We are whores and saints, gamblers and holy men. Luther always said that Christians are saints and sinners. 

May God make us recognize that being a Christian does not mean we are not sinners. We Christians, Muslims, Jews, Atheists, human beings… there is no difference between us in terms of good and evil: we are all sinners. And then maybe we start to worry more about loving rather than judging our neighbor. 

terça-feira, 1 de maio de 2012

Espectador


A televisão estava sempre ligada na casa do velho militar, sempre sentado ao sofá. Desde que se aposentara, passava as tardes assistindo filmes, após o metódico exercício pela manhã que iniciava por volta das nove horas no verão. “Depois esquenta muito”, dizia o reservista. Mas após o almoço, assistia a seus filmes antigos em seu canal favorito de TV a cabo. No filme de hoje, só para variar, personagens em preto e branco se beijavam em um novamente inédito final feliz. O sisudo senhor chorava copiosamente, ainda que tentasse disfarçar o indisfarçável, tamanho era o volume de água. A mulher do velho riu, enquanto o velho não sabia se ficava irritado, envergonhado ou se continuava a sentir aquilo que a vida não o deixou sentir.

No apartamento ao lado, o vizinho via o mesmo filme. Na verdade, ele estava apenas passando os canais, terminado o jogo de futebol. O guri gremista do outro prédio gritara “gol” extasiado, o que o lembrara de que o dia de amanhã não traria mais um problema, uma vez que seus colegas de trabalho na universidade, aquele bando de professores colorados, não encheriam seu saco com as piadinhas costumeiras dos dias pós-derrota. Estava satisfeito, embora não tanto por ter vencido, mas sim porque evitaria a fadiga. Ao trocar de canal, deixou no canal do filme, que estava quase em seu final feliz tradicional. “Esses filmes de antigamente eram tão ingênuos. Idiotas, talvez. Será que as pessoas eram mais ingênuas antigamente?”, pensou ele. O professor foi para o quarto e voltou a pensar na sua viagem de um ano que faria em breve para realizar um pós-doutorado no exterior. Era preciso ainda fazer muita coisa e a viagem era logo daqui a dois dias.

Ele abriu uma caixa e procurou o que de importante havia dentro. Era uma caixa de guardar coisas. Havia muitos fios emaranhados, alguns recortes de jornais antigos e cartões da época em que correspondências ainda eram enviadas com mais frequência. Pegou algumas coisas que interessava. Suas gaitas de boca estavam em um canto do quarto – com umas três delas, poderia se virar por algum tempo, mas os violões teriam que ficar por aqui lamentavelmente. “Bom para os vizinhos, que não me ouvirão cantando”, pensou em tom irônico, embora seus vizinhos elogiassem sua performance ao vivo no seu quarto.  Olhou de novo para a caixa, perguntando-se por que a tinha. “Talvez pelo mesmo motivo que pessoas veem filmes antigos que sempre acabam do mesmo jeito”, pensou.

“We were watching TV, we were watching TV”, dizia a música que saía das caixas de som de seu computador. Na TV passavam algumas propagandas sem sentido. Pensou na caixa de guardar coisas e no que deixava para trás na cidade onde tinha nascido e crescido. “Não vai fazer tanta falta”, pensou. “In Tiananmen Square, lost my baby there”, continuou a música, que falava sobre a morte de uma estudante que morrera no Massacre da Praça da Paz Celestial, perpetrado pela ditadura chinesa. Uma morte gravada por câmeras e mostrada para o mundo inteiro pela TV. “Malditos ditadores”, pensou o professor. Em seguida, conseguiu ver da janela o velho militar enxugando as lágrimas com mais um filme antigo que começara faz pouco. Com certo desprezo, ele pensou: “Mas esse velho fazia parte da ditadura, como pode... talvez seja o único espaço em que eles podem chorar as mortes de suas vítimas”.

Sentou-se na poltrona, cansado sem saber o motivo. Não fugiu mais do que sentia. Sabia no fundo que passar um ano fora seria algo difícil, deixando toda sua vida para trás, com suas alegrias e tristezas. Tentou deixar de estar distante de si mesmo. Difícil fazer isso, mais forte do que ele. Sentiu-se um espectador da própria vida. Na verdade, menos do que um espectador, porque espectadores torcem, gritam, choram ou sorriem, dependendo dos sucessos ou desventuras de personagens ou jogadores.  Era o que faziam o guri fanático por futebol e o velho militar viciado em filmes velhos. Ele era um espectador imparcial do filme de sua própria vida. Mas diante da perda do que era mais importante, já não era possível carregar o peso de não sentir.

domingo, 18 de março de 2012

Guerras e muros



Um dos discos mais famosos da história do rock, The Wall, da banda inglesa Pink Floyd, não é cultuado até hoje apenas por sua qualidade musical. Roger Waters, baixista da banda, trabalhou uma série de questões psicológicas e políticas nas letras do álbum temático. No início dos shows da atual turnê de Waters, logo aparecem as referências a seu pai. Uma foto, o nome completo, a data de nascimento e morte. O pai de Waters faleceu na II Guerra em 1944, deixando Roger órfão aos cinco meses de idade.

É estranho talvez pensar em como a morte prematura de um pai, que Waters sequer conheceu, tenha o afetado a tal ponto que se tornou assunto recorrente no álbum. Ficamos sensibilizados com os horrores de guerras quando vemos fotos de crianças na África sem pernas após terem pisado em minas terrestres; em filmes que retratam guerras, como por exemplo, “O Resgate do Soldado Ryan”; no videoclip da canção “Brothers in Arms” do Dire Straits; nos horrores praticados por guerrilhas com crianças. A morte é um fantasma em nossas vidas, mas ainda mais dolorosa para aqueles cujos entes queridos foram vitimados prematuramente, fugindo do curso natural da existência. Se você perdesse seus pais ou irmãos em uma guerra, seria compreensível você criar horror à guerra e suas nefastas consequências. Mas será que para um bebê de cinco meses isso é tão relevante assim? E para aqueles cujos parentes passaram por guerras e sobreviveram? Será a guerra ainda assim traumática de forma indireta?

Não posso compreender exatamente o que se passou na cabeça de Waters. The Wall dá uma boa pista, mas há uma canção que não foi lançada no álbum e que mostra um pouco o quanto a morte de seu pai impactou na sua vida. No filme “the Wall”, lançado alguns anos depois do álbum, temos a canção “When the Tigers Broke Free”. Nesta música, Waters descreve como ele acidentalmente encontrou uma carta do Rei da Inglaterra comunicando a morte do seu pai – escondida em uma gaveta de fotos antigas. Na última estrofe, de forma dramática, Waters descreve da seguinte forma a batalha que vitimou seu pai:

It was dark all around.
There was frost in the ground
When the tigers broke free.
And no one survived 
From the Royal Fusiliers Company C.
They were all left behind,
Most of them dead,
The rest of them dying.
And that's how the High Command took my daddy -  from me. 

“Foi assim que o Alto Comando tirou meu pai de mim”. Evito utilizar o pronome “lhe” na minha tradução livre para enfatizar a dor que lhe causou a morte de seu pai, como ele próprio enfatiza no fim da canção, seguido de um silêncio repentino ensurdecedor. Provavelmente essa dor não foi lhe passada diretamente, mas o modo como tais acontecimentos afetaram sua mãe e demais parentes certamente não lhe passou despercebido. Nossas ligações emocionais com nossas famílias não permitem que escapemos da dor que ali convive à espreita, como um fantasma morto que nos assombra. Ela aparece, por exemplo, quando vemos como nossos pais lidam com situações limítrofes que nos afetam. (In)felizmente, temos uma forte capacidade empática de perceber a dor das pessoas próximas. Não é para menos que histórias de nossos avós ou pais nos emocionam, mesmo quando ocorreram em um passado distante, antes mesmo de nascermos. 

Talvez por isso a guerra seja tão horrível. Os custos da guerra não se resumem ao impacto sofrido por quem viu a guerra e recebeu a notícia da morte de parentes e amigos. Essas dores perduram nas gerações seguintes, mesmo quando não se tocam nesses assuntos, justamente devido à dor que causam. Os traumas de nossos pais fazem com que eles próprios, para se protegerem, se distanciem de si mesmos. Esse processo de distanciamento de si próprios impede que eles dividam suas dores com os outros, mesmo com seus filhos. E, assim, nos distanciamos de nossos pais e até de nós mesmos, porque aprendemos em casa que não é bom se aproximar de si mesmo e lidar com suas próprias tristezas e alegrias.

Waters perdeu o pai na guerra. Mas quanto sua mãe também não morreu com isso? O quanto ele próprio não perdeu a si mesmo ao ver seus entes mais queridos se distanciarem de si mesmos para se protegerem? Não é à toa que o disco se chama “The Wall”. Não é à toa que construímos muros em volta de nós mesmos. Meu pai sobreviveu ao totalitarismo comunista e à Guerra da Coreia, minha mãe sobreviveu às péssimas condições de vida em um país destruído por uma sangrenta guerra civil. O quanto deles eu perdi com a guerra? E o quanto eu perdi de mim mesmo? Quão alto é o muro que criamos entre nós e o mundo?

“Mother, did it need to be so high?” (“Mother”, Pink Floyd - The Wall)

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Obsessão

"Canetas alinhadas em cima da classe; razonetes, tabelas e gráficos desenhados à régua; teses e trabalhos escritos durante a madrugada e revisadas dezenas de vezes; gavetas com as marcas dos objetos que estão sempre no mesmo lugar; não tomo café porque faz mal à saúde, me vê um chá aí; cortei os doces e tudo mais que é doce na minha vida; obrigado pelos parabéns, agora parem de pular e gritar, por favor; o almoço tem que ser em ponto, estás atrasada de novo; nove não é o suficiente, alguém estava estudando enquanto você estava aí feito bobo deitado na cama; as linhas desse edifício não estão corretas; essa maquete está um pouco fora de proporção; o nariz do personagem está mal-desenhado; as folhas têm que ser dobradas em três pedaços, não dois, existe um padrão; não, não fumo, nunca fumei, nunca fumarei; não bebo, depois acabo perdendo o controle; emoções também devem estar sob controle, abraços devem ser evitados, beijos também; não sinto saudades; maldito ônibus atrasado por dois minutos; olha a meia fora da gaveta, isso estraga as gavetas, você não faz nada direito?; formato seus trabalhos nas normas da ABNT; Deus quer que você leve uma vida regrada, sóbria e ascética; se é pra fazer, faça bem feito; se você quer que Deus te abençoe, como você oferece apenas umas míseras moedas para ele?; você tem que ser uma pessoa produtiva; você quer ser reconhecido ou ter valor? Faça por merecer; você tirou 7 em inglês? Que tipo de profissional você acha que vai ser?; com esforço conseguiremos tudo, até a salvação." Em cinco minutos, todas essas imagens e sons tinham vindo até a cabeça do rapaz, que se revirava inquieto na cama.

Dormir não estava mesmo muito fácil. “Faço tudo bem feito, mas onde está o limite?”, perguntou ele para si mesmo. Ligou o abajur e procurou algum livro no seu criado-mudo. Havia alguns ali. Abriu seu livro do García Marquez, “Memórias de minhas putas tristes”, que ele já tinha começado a ler. Depois de algumas páginas, a seguinte frase da página 74 o perturbou:

"Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, casa assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente em ordem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra a minha negligência; que pouco generoso para encobrir minha mesquinhez e sempre penso o pior, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que ninguém saiba como pouco me importa o tempo alheio. Descobri, enfim, que o amor não é um estado da alma e sim um signo do zodíaco."

“Se o amor for um signo, ele nada pode mudar nesse mundo...” – pensou o rapaz novamente., suspeitando da afirmação. Fechou o livro. Ligou o computador, o Facebook, o Orkut, o MSN, o Twitter, o MySpace e o Jango. As caixas de som começaram a tocar a canção “Walk On” do U2:

And love, it's not the easy thing
The only baggage, that you can bring
Not the easy thing, the only baggage you can bring
Is all that you can't leave behind

[…]

All that you fashion, all that you make
All that you build, all that you break
All that you measure, all that you feel
All this you can leave behind

All that you reason, all that you care
(It's only time and I'll never fill up all my mind)
All that you sense, all that you scheme
All you dress up, and all that you see
All you create, all that you wreck
All that you hate…

Ignorou as pencas de mensagens de amigos/as (?) no MSN e desligou tudo, à exceção do abajur. Abriu um livro de poemas de Dietrich Bonhoeffer, seu teólogo preferido - sim, desde que ganhara o livro, tinha agora um teólogo preferido:

“Sustentado apenas pelo mandamento divino e pela tua fé,
e a liberdade acolherá teu espírito com júbilo”.

"Apenas, mais nada. É assim que somos livres". Foi a última coisa que ele pensou antes de dormir.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Diferentes iguais

Meu primeiro torneio de futebol ocorreu no jardim de infância, quando eu tinha cinco anos de idade. Foi pedido a todas as crianças que trouxessem uma camisa de futebol. Transmiti o recado aos meus pais, que não vendo solução melhor para isso, uma vez que eu não tinha qualquer fardamento futebolístico, vestiram-me com uma camisa que tinha um símbolo no lado direito do peito e disseram-me que era a camisa de um time de futebol coreano.

Um de meus colegas chamado João Paulo notou a diferença e perguntou que camisa era aquela. Afinal, ela em nada se parecia com uma camisa de futebol. Não sei se acreditei nos meus pais ou se foi meu primeiro auto-engano (para eu me lembrar até hoje desse episódio), mas apenas repeti o que meus pais tinham dito. Acho que o João Paulo, com sua camisa do Botafogo (vai entender porque ele tinha uma camisa do Botafogo estando em Porto Alegre), acreditou na história.

Ele virou as costas e, como sempre, percebi a sua estranha verruga logo abaixo da nuca. Uma daquelas peludas, mas separada do couro cabeludo, uma ilha de cabelos com forma geométrica irregular. E peluda, como uma daquelas aranhas caranguejeiras. Sempre achei aquilo muito estranho, como se não coubesse em meu platônico mundo das ideias infantil. Mas talvez ele ou outros achassem estranho meus olhos puxados, assim como também achassem(os) estranho uma pessoa negra no meio deles – principalmente em uma cidade predominantemente branca, ainda mais nos estratos médio e alto de renda.

Nessa turma do jardim de infância, havia também a menina mais bonita – como sempre. Era a Débora, com suas duas chiquinhas simétricas em cada lado da cabeça. Foi minha primeira frustração amorosa, uma vez que ela era “namoradinha” do Luis Afonso, cuja principal característica era ser “babão”. Não que eventualmente minha saliva não escorra involuntariamente de minha boca enquanto durmo na biblioteca até hoje, para, logo após observar maravilhado a arte feita na mesa, olhar para todos os lados a fim de verificar se não fui descoberto em flagrante. Mas eu não podia entender ou tolerar que a guria mais bonita gostasse do menino que balbuciava fazendo bolhas de saliva.

Assim como as crianças, somos pouco tolerantes ao natural. O diferente às vezes incomoda e não sabemos como lidar com ele. A saída é por vezes é uma piada infeliz ou fechar os olhos para o mundo, criando um outro mundo paralelo quando convém.

Fiquei feliz no último Congresso Nacional da Juventude da igreja a qual pertenço, a igreja de confissão luterana. Era difícil fazer os 800 jovens, em sua maioria adolescentes, ficarem quietos em apresentações de corais de idosos ou de orquestras infantis. Mas em um momento específico, quando passou um vídeo no telão mostrando uma jovem cega “escrevendo” em braile o tema e o lema do congresso, um silêncio sepulcral tomou conta do ginásio. Nem os grilos do pátio se manifestaram. Ali, aqueles jovens, com todos os seus defeitos, mas que se consideram cristãos e luteranos, deram-se conta de que o diferente era igual. Afinal, somos todos filhos e filhas de Deus, igualmente amados e valorizados.

Todos então bateram palmas na linguagem dos surdos-mudos, balançando ambas as mãos em silêncio, sem exceção. Respirei fundo e fiquei pensativo. Não é sempre que acreditamos que esse mundo ainda tem salvação.

*Agradeço ao Amir Straub por parte dessas ideias, advindas após uma reunião que organizamos no grupo de jovens de nossa paróquia, a JESP, sobre a música “Ninguém=Ninguém” dos Engenheiros do Hawaii e com base na passagem bíblica de I Coríntios 12.12-31.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

(Não) somos porque temos

Quando eu era pequeno, eu e minha mãe costumávamos caminhar incansavelmente pela Rua Voluntários da Pátria no centro, uma espécie de “25 de Março” dos porto-alegrenses, procurando por produtos baratos. Por exemplo, camisetas brancas da Hering. Embora existissem já lojas da Hering em pontos mais nobres da cidade, não fazia o menor sentido na cabeça da minha mãe comprar pelo dobro do preço o mesmo produto. Melhor era entrar em uma dezena de lojas comparando os preços, a fim de não perder um único centavo (mesmo que o gasto com a sola do sapato acabasse talvez sendo superior ao dinheiro poupado).

Meus pares de tênis, lembro-me bem, duravam de um a dois meses até ficarem completamente destruídos e furados. Afinal, pés de crianças crescem, não vale a pena comprar coisa melhor. Certa vez, meu pai trouxe sapatos para mim e para minha irmã, cujos tamanhos deveriam estar próximos de 30, o que causou uma séria briga conjugal. Meu pai era pão-duro, mas certamente minha mãe era mais radical.

Uma certa dose de razão havia no posicionamento da minha mãe. Além de ela ter crescido em um contexto de guerra, em que a escassez era extrema na Coreia, as condições do Brasil não eram das melhores. A inflação incessante engolia o poder de compra das famílias rapidamente e a instabilidade econômica era grande no começo dos anos 1990. Além disso, meu pai estave em fases mal-sucedidas financeiramente naquele período, em que dívidas apareciam e a crise era iminente.

Na época, eu estudava em escola pública, carregando alguns milhares de cruzeiros no bolso que só serviam para comprar balas. Havia, obviamente, colegas bem mais pobres do que eu. Lembro de um colega filho de empregada doméstica que morava em Viamão e cujas roupas esfarrapadas evidenciavam sua condição. Embora em situação difícil por vezes, minha família poderia ser considerada da classe média – a situação era difícil porque tínhamos um padrão de consumo de classe média. Outros colegas tinham melhores condições, é verdade, uma vez que a escola pública a que me refiro estava em um bairro de alta renda (Moinhos de Vento). Mas pouco me importava em caminhar por horas para comprar uma camiseta ou usar um par de tênis que, depois de andar meia quadra, já me deixava só com a meia. Tudo bem que os amigos da família eram mais ricos, assim como as famílias da comunidade coreana em geral, mas eu não me importava muito com esse fato.

Entrei no Colégio Militar e lá as pessoas em geral pertenciam à classe média ou média alta. Não eram ricos como nas escolas particulares mais famosas, mas não lembro de ter conhecido pobres. As famílias dos alunos do Colégio Militar eram famílias de classe média que valorizavam a educação e que almejavam o sucesso de seus filhos - ou seja, que eles tivessem condições para galgar a ladeira em direção a classes de renda superiores. Minha igreja também, predominantemente de classe média alta, me fornecia amigos com boas condições financeiras. Era natural que meu padrão de consumo passasse a refletir isso. Posteriormente, na UFRGS, meus colegas e amigos eram das classes alta e média alta. E aos poucos, fui perdendo a simplicidade no consumo, embora continuasse um pouco sovina como meus pais. Minha irmã entrou na Medicina, eu na Economia: o contexto e as companhias eram outras.

Nesse processo de entrar na vida adulta, tenho a impressão que perdi algo no meio do caminho. Minha família está em melhores condições financeiras hoje, eu mesmo ganho um salário. Posso manter um nível de consumo similar aos das pessoas que me rodeiam. Mas a simplicidade e os valores mais básicos da vida parecem ter se perdido um pouco. Torna-se mais importante beber Guinness (embora essa cerveja seja de fato muito boa) do que beber cerveja barata com velhos amigos em algum canto. É como o alferes do conto de Machado de Assis que só se enxerga no espelho quando está vestindo seu uniforme. E cada vez mais, me afasto da realidade social da maioria das pessoas que vivem nesse país. Não é culpa por consumir, é apenas ter percebido que posso ter entrado, sem perceber, no jogo da nossa sociedade. O valor das pessoas (e, portanto, meu próprio valor) não está no ter, mas isso não é o que a sociedade tenta nos dizer. Mesmo sabendo disso, não é difícil sermos engolidos pelos ditames do mundo.